cinema

Efeito borboleta

Há pouco mais de seis anos, estive no Alasca com meu amigo Paul, e um dos lugares mais fascinantes que visitamos – entre tantos – foi uma baía chamada Sadie Cove. Naquele cenário praticamente deserto e eternamente iluminado, povoado apenas por animais silvestres e pouquíssimas cabanas como a que estávamos, decidimos nos aventurar em dois caiaques até o final da baía. Enquanto Paul aproveitava seu tempo tirando fotos das águias no céu e dos ursos a distância, eu seguia firme no meu propósito de chegar ao outro lado. Em certo momento, Paul deu-se por satisfeito com o passeio e decidiu voltar; eu segui: cheguei ao meu destino e decidi não descer do caiaque, mesmo com vontade de fazer xixi, em parte porque descer do caiaque sobre a água congelante exigia uma logística além do que estava disposto a enfrentar, em parte por medo de ser atacado por ursos que pudessem aparecer por ali. Ao me virar parar voltar, vejo Paul como um pequeno ponto já próximo à cabana. E uma enorme nuvem negra vindo em minha direção. Começo a remar e percebo que praticamente não saio do lugar… Não há o que fazer senão controlar a bexiga, lutar contra a cãibra e continuar a remar para chegar à cabana antes da tempestade. “Estou vivendo uma grande aventura ou entrando em pânico?”

Foram cerca de 40 minutos para ir e mais de duas horas para voltar. 
 
Paul me recebeu aliviado, mas também um pouco irritado. “Por que você não voltou antes?! Você e essa sua mania de fazer as coisas até o fim!” 
 
Eu e essa minha mania de fazer as coisas até o fim… Eu nunca tinha pensado em mim dessa forma, como alguém que “sempre faz as coisas até o fim”. Se tivesse, porém, teria levado isso como um elogio. É excelente terminar projetos, concluir planos, tirar tudo da gaveta para arrumar o quarto e, de fato, colocar tudo de volta. Mas o ponto é que as coisas mais importantes talvez sejam justamente as que não podemos fazer até o fim, as que não podemos ter controle.
 
Temos planos para a nossa vida, aí seguimos por ela e vemos que ela tem planos diferentes para a gente. Temos planos para os nossos filhos, aí seguimos e vemos que eles também têm seus próprios. Todos começamos uma jornada, direcionamos nossos caiaques, mas nem sempre cabe a nós concluir a viagem. É como o fenômeno fascinante do ciclo migratório das borboletas monarcas: borboletas que viajam milhares de quilômetros, de norte a sul dos EUA, fugindo das baixas temperaturas e buscando alimento. Não seria nada extraordinário, não fosse um pequeno detalhe: elas nunca completam o ciclo. Como sua expectativa de vida é baixa, são necessárias várias gerações de borboletas para chegar ao destino, de forma que nenhuma delas irá percorrer todo o trajeto. Algumas começam a jornada, outras terminam.
 
Recentemente as filmagens do meu primeiro longa-metragem foram concluídas. A jornada começou há mais de dez anos, em um computador que não existe mais, num quarto que não é mais meu. Lá começaram a surgir personagens, cenários, conflitos. Por muito tempo a jornada foi solitária: eu e eles. Passaram-se alguns anos, surgiu um diretor/produtor para dar um sopro de vida à história, dar um endereço e um coração aos personagens. Mais alguns anos se passaram, mais artistas entraram na jornada, deram cor, luz, som; atores literalmente deram vida às famílias que existiam apenas em forma de palavras. 

E ali a jornada deixou de ser minha. 

Uma nova geração de borboletas fez a história nascer em forma de filme e coube a mim apenas testemunhar o espetáculo. Em alguns meses, essa nova geração também termina sua jornada, e uma outra vai assistir a essa história e levá-la adiante para as gerações futuras, em uma jornada que eu jamais saberei como irá acabar. 
 
E tudo bem, porque às vezes na vida a magia está justamente em começar uma jornada para que outros a terminem.
 

Foto: Making of “Do Outro Lado da Lua” por Santi Asef

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cinema

Academy Award Nominee, Tom Rickman

Desde pequeno, sempre tive grande apreço por professores: pessoas que dedicam a vida a ensinar o que sabem ao outro e que, muitas vezes, não são valorizados como deveriam. 

É verdade que tal pensamento não foi exatamente um instigador de popularidade durante o Ensino Fundamental, mas felizmente tal apreço passou a pegar bem na vida adulta e me fez estar sempre atento àqueles que dedicavam seu tempo a me tornar uma pessoa melhor, seja qual fosse o âmbito.
 
Professores picaretas abundam, é verdade, e quando falamos em professores de roteiro — ou de arte em geral — não me espantaria se o índice bom/picareta tendesse a zero. Ainda assim, em mais de dez anos de estudos, tive a sorte de passar ileso pela picaretagem e ter sido mentorado por professores que, cada um à sua maneira, me tornaram um escritor melhor, entre eles, Tom Rickman. 
 
Tom tinha a capacidade de enxergar as gemas nos roteiros dos alunos e trazê-las para a superfície; sabia lapidá-las e devolvê-las como se fôssemos nós os responsáveis por tudo aquilo. Sabia também exigir o máximo de nós a cada encontro. “Hoje eu acordei às 3h30 da manhã, li as páginas de vocês, escrevi um pouco, fiz exercício, tomei café da manhã e vim pra cá. E eu tenho câncer. Qual a sua desculpa?” — disse ele, com uma gentileza inexplicável, a uma aluna que não havia trazido suas páginas.
 
— Você já foi indicado ao Oscar, não foi, Tom? — perguntei um dia. Ele deu um sorriso tímido. — Sim, por quê? — Pedi, então, que contasse como aquilo havia afetado sua carreira.
 
— No ano em que eu fui indicado, adiaram a data da cerimônia pro dia seguinte porque tentaram matar o Ronald Reagan. Eu lembro que eu pensei: “mas que droga, bem no meu Oscar!” Nós rimos e ele continuou: — Logo depois surgiram várias propostas de trabalho, mas o tempo vai passando, vem uma nova geração e ninguém mais se lembra de você, se você foi indicado, se você ganhou. Eu deixo as pessoas se confundirem, mesmo…
 
Uma vez saímos para tomar café e falar sobre o meu roteiro — e sobre a vida. Foi ali que ele me disse algo que transformaria para sempre minha maneira de ver a profissão: — Se tiver uma única cena no filme que está exatamente como eu escrevi, eu já fico feliz. O meu prazer está em escrever, em criar a história, os personagens, não em ver o filme pronto. Eu nem gosto de ver os meus filmes… 
 
Alguns meses depois Tom teve de ser internado. Fomos visitá-lo e descobrimos que Elizabeth Taylor estava internada no quarto ao lado. “Who cares?! I’m here to see Academy Award Nominee, Tom Rickman!”, brincou meu amigo. Liz Taylor jamais sairia daquele hospital; Tom Rickman ainda impactaria a vida de muitos por mais sete anos antes de partir.
 
Tom certamente não ficou conhecido como Liz. Muitos sequer ouviram seu nome. Já não tenho como saber o que ele pensava sobre isso, se no fundo sonhava ser reconhecido na rua, receber prêmios, fazer mais filmes do que fez, ou se não estava nem aí pra isso. Como escritor, imagino que parte de suas aspirações envolvia conectar-se com os outros através das suas palavras, dizer algo às pessoas, inspirá-las, instigá-las; tornar o mundo um pouco melhor através da arte. 
 
Eu espero que ele saiba que conseguiu. 

Foto: Tom Rickman (08/02/40 – 03/09/18) por Getty Images

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viagem

Carros

A relação das pessoas com carros costuma dizer muito sobre elas. Meu sobrinho, por exemplo, é fanático por eles — sejam reais, sejam personagens do filme da Disney. Ele acha a Itália incrível porque é a terra dos Cinquecentos e sabe dizer a marca de praticamente todos os carros que passam na rua — desde os três anos de idade. “Pai, por que nas Olimpíadas aparece o símbolo da Audi em todo lugar?”

Já meu pai, que também acha a Itália incrível e é fiel à Fiat há mais de vinte anos, tem zero apreço por seu veículo — ou “depósito de jornal”, segundo minha mãe — e o encara com a mesma filosofia que encara um rolo de papel higiênico: use até acabar. “Essa fumaça preta é completamente normal, não tem nada a ver com aquele barulho, não se preocupe.” 
 
Eu sempre gostei de dirigir, mas nunca dei muita bola para carro, e o principal comentário de quem entra no meu costuma ser: “que limpo!” Existe, porém, uma relação muito pontual que costuma abalar minha tranquilidade automobilística e me deixar em constante estado de atenção: a com o carro alugado. 
 
O carro alugado em uma viagem pode resolver grandes problemas — e depois criar outros ainda maiores.

Você chega no estande da locadora, uma mulher sorridente encontra a sua reserva.

— O senhor não quer fazer um upgrade por apenas doze dólares por dia?
 
Você recusa a gentileza e ela, na maior cara de pau, continua: 
 
— Você está com sorte, estou vendo aqui que você ganhou um upgrade grátis! Aqui está seu Mustang.
 
— Senhora, eu reservei um Ford Ka.
 
— Ah, mas o Mustang é muito melhor, muito mais bonito, muito mais potente.
 
Você, que só queria um Ford Ka, sai resignado com seu carro esportivo que ficará estacionado na rua, à mercê de vândalos, pelos próximos dias e sua exorbitante autonomia de três quilômetros por litro. 
 
Outro grande momento do aluguel de carro é quando perguntam: “vai querer o seguro?”. 
 
Na última vez que precisei alugar um carro, há algumas semanas, já cheguei preparado, com uma reserva usando o cartão de crédito que já me oferecia um seguro como benefício. A atendente, sem tirar o sorriso do rosto, começa seu joguinho terrorista.
 
— Perfeito, senhor, mas o senhor sabe que o seguro do cartão só cobre a primeira ocorrência, né? Cada risco em partes diferentes do carro são ocorrências separadas. Mil euros cada uma.
 
Eu respondo um “sei, sim” como se o que ela está dizendo fizesse total sentido e aí, apesar de todo o planejamento, começo a me duvidar. De um lado, meu eu racional sabe que está tudo sob controle; de outro, um diabinho debocha: “Vai, bobo, recusa o seguro! É só uma viagem de três horas, à noite, numa estrada desconhecida e em obras, onde o celular não pega, com seus pais idosos no carro. É claro que você vai conseguir falar com a Visa no Brasil se precisar! O que pode dar errado?”
 
CORTA PARA:
 
EUA, 2014. Estou no país para o casamento de um amigo, em Santa Bárbara. Alugo um carro no aeroporto de Los Angeles — “O seguro aqui é obrigatório, senhor, não importa se o senhor tem AAA, vai querer ir contra a lei?!” Vou retirar meu terno na loja. Ao sair, um bilhete no retrovisor: uma multa. Descubro que não era permitido estacionar do lado ímpar às terças-feiras após o pôr-do-sol. Entro num posto de gasolina para manobrar, ouço um grande estalo. Percebo que dei ré em um cabo de aço preso do teto ao chão. Momentos de tensão. Desço do carro. Nenhum estrago aparente. Volto a respirar e decido comemorar minha vitória com alguns amigos num restaurante. Saio do restaurante, aceno para o Joaquin Phoenix — ou seria um morador de rua? — e entro no carro. Uma luz misteriosa está acesa no painel. “Que exclamação é essa, meu Deus?”. Abro o manual. Não é o óleo, não é o fluído de freio: é a pressão do pneu. Desço do carro e noto que o pneu traseiro está no chão. Penso em chamar Joaquin Phoenix para ajudar, mas ele já se foi, assim como meus amigos. Procuro o estepe: não tem. Descubro um kit reparador de pneus e recorro a toda minha destreza para usá-lo. Chego à locadora, levo uma bronca por ter reparado o pneu em vez de chamá-los e recebo um novo carro. Cem metros depois, a luz de “cheque seu motor” se acende. Volto à locadora. Recebo um carro pela terceira vez e, enfim, parto por 150 km em direção ao casamento. “Eu peguei o terno?!”
 
VOLTA PARA:
 
Itália, 2018. Estou só, no carro, a caminho do aeroporto de Catânia, após vinte dias intensos de viagem. O trajeto de três horas sob um sol de 40 graus está perto do fim quando uma luz familiar acende no painel: “pressão baixa no pneu”. Momentos de tensão. Paro no primeiro posto e desço do carro, com medo de olhar. Checo cada pneu — chuto, aperto, inspeciono: tudo parece normal. Procuro uma bomba de ar, não encontro; procuro um atendente, não encontro. “Faltam apenas 50 km, vai dar certo.” Ligo o som, me lanço de volta à estrada. Seja o que Deus quiser! Enfim, chego ao aeroporto, entrego a chave ao atendente, ele some no pátio, volta minutos depois. 
 
— Tudo certo, seu depósito caução está liberado, boa viagem!
 
Respiro aliviado e sigo para o check-in. “Seguro? Pra que seguro? Melhor comprar uma AirFryer.” 

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Cotidiano

A pele que habito

Minha família se divide em dois grupos: os que evitam os médicos ao máximo e só vão a um consultório quando estão tossindo há três semanas e os que à primeira dorzinha vão correndo para a lista de médicos conveniados, buscando o reumatologista mais próximo.

Eu sou o presidente do segundo grupo. 
 
Minha jornada de saúde envolve exames de tomografia, ressonância, audiometria, laringoscopia, ureteroscopia, além de passagens por gastros, uros, físios, oftalmos, neuros, otorrinos e, principalmente, dermatologistas. 
 
Minha primeira dermatologista era a esposa do meu meu pediatra. Era minha primeira incursão no mundo das tetraciclinas, isotretinoínas e ácidos salicílicos. Passei grande parte da adolescência lutando contra espinhas em um 7 a 1 diário, com cremes, antibióticos, limpezas e peelings ácidos, até que resolvi usar outras armas e consultei outra dermatologista que, sob os protestos da minha mãe, me receitou a mãe de todas as drogas, aquela que acabaria de vez com a acne (e talvez com o meu fígado, e com a minha capacidade de amar), e traria de volta ao meu rosto a pele de bunda de neném: o Roacutan. 
 
“Depressivo fica quem tem espinha, não quem está tratando!”, assegurava a médica, enquanto rebatia os efeitos colaterais do seu herói. “Precisa ver essas pintas também, hein? E protetor solar, ‘tá usando? Tem que usar!” 
 
Após um ano de exames de sangue bimestrais, secura nos olhos, nariz e boca, e protetor solar, a batalha parecia, enfim, vencida. Até que, uma década depois,  conforme devidamente informado na bula, elas voltaram: não tão agressivas, mas sorrateiras, à espreita, sempre prestes a aparecer na véspera de um casamento. E não voltaram sozinhas! Vieram acompanhadas de um clássico dos homens que deixam a tenra idade para trás: a queda de cabelo.
 
Meu novo dermatologista atacou todos os problemas em consultas de 13 minutos e com medicamentos manipulados: uso oral, uso tópico, uso utópico.
 
“Problema pra transar tem quem é careca, não quem está tratando!”, assegurou ele, tentando me tranquilizar quanto aos 2% de chance de impotência com o uso de Finasterida. “Fica tranquilo, seu nível de testosterona é muito alto, por isso as espinhas e a queda de cabelo.” Saí do consultório cheio de receitas, amostras grátis e virilidade. “E filtro solar, tá usando? Toma aqui mais uma receita.”
 
Mudei de plano, mudei de médico e mudei minha visão de mundo ao perceber que, pela primeira vez, meu médico era mais novo do que eu. Eu podia estar salvando vidas, tirando pintas, curando doenças, mas não: fico aí, escrevendo historinhas e vendo séries…
 
Foi com essa bagagem médica que cheguei ao consultório da minha mais nova consultora dermatológica, Dra. Patrícia. Relevei o fato de que havia-se formado na escola no mesmo ano em que terminei o mestrado e, como um aluno aplicado em dia de prova, cheguei disposto a impressionar. Anos de experiência na área não haveriam de ter sido em vão!
 
— Conta pra mim, Antoniô, o que te trouxe aqui hoje?” 
 
Só médicos e professores em primeiro dia de aula me chamam de “Antoniô”, logo, tudo seguia no caminho certo. 
 
— São duas coisas. A primeira é a acne que deu uma piorada. Já usei tetraciclina, isotretinoína, agora estou com adapaleno e peróxido de benzoíla, mas não sei se de repente tem algo novo — disse eu, como um médico em um congresso que discute as novas drogas do mercado.
 
— Não, está ótimo! É isso mesmo. Está usando filtro solar? Tem que usar!
 
— Tentei de tudo, até manipulado: todos me dão espinha. Recentemente achei um que parece funcionar.
 
Ela abriu a gaveta e me deu um pot-pourri de mini-protetores.
 
— Tente esses, são todos ótimos — disse entregando meus velhos inimigos de guerra.
 
— Bom, além disso tem as pintas.
 
Saquei nerdemente minha pastinha e mostrei minha dermatoscopia: um exame com fotos de todas as pintas (oficialmente, “nevos”) do meu corpo.  
 
— Uau, muito bom! E, conta para mim, Antoniô, por que você fez esse exame? Tem algum caso de câncer de pele na família?
 
— Tem sim. Eu mesmo.
 
Seus olhos brilharam. Aproveitei sua fascinação e continuei:
 
— Em 2005, extraí um nevo no dorso e o resultado do exame acusou um melanoma. Fui ao oncologista e ele pediu para refazer o exame e concluiu que não chegava a ser um melanoma, mas um nevo melanocítico de alta atipia, então ele fez uma extração com ampliação. Depois disso tirei mais umas 15 pintas. Agora eu só acompanho. 
 
“Que homem! Que case!”
 
— E você sabe me dizer porque ele mandou repetir o exame?
 
“Eu sei! Eu sei!”
 
— É que no primeiro exame deu que havia tido regressão, então eu ia precisar fazer o exame de sentinela, que tem que tomar anestesia geral e tal. Como esse era o único indicador alterado, ele pediu pra refazer. Aí veio o novo resultado.
 
Nota 10!
 
Pati apanhou os exames. Seus olhos brilharam novamente como quem segura uma camiseta usada por um ídolo.
 
— Foi o Professor Bonifácio que fez a ampliação?! Digo… Doutor Bonifácio. É que eu chamo ele de professor porque faço pós em Onco e tenho aula com ele. Ele é incrível! Se ele decidiu que apenas a ampliação era o suficiente, eu tenho certeza que esse era o melhor caminho. Porque, assim, ele… é uma referência no assunto. Mesmo!
 
Naquele momento, me senti levemente superior: ela poderia ser a melhor aluna da sala, poderia um dia dividir um consultório com ele, tê-lo como mentor a vida toda, mas foi o meu quase-câncer no dorso que doutor-professor-estrela Bonifácio extraiu com perfeição numa manhã de segunda-feira: isso ela jamais teria!
 
— Vamos dar ali dar uma olhada nas pintas, então.
 
Agora com o status de sub-celebridade, tirei a camisa, a calça, a cueca: não eram nem 9h da manhã e uma estranha já escrutinava meu corpo nu. 
 
— Tá tudo certo, pode se vestir. É só continuar acompanhando. Vou te dar um gel secante pras espinhas e um pedido pra uma nova dermatoscopia. Daqui uns meses você volta aqui, hein? Quero te ver de novo! 
 
Não consegui me lembrar da última vez em que me haviam dito “Quero te ver de novo!” com tanto entusiasmo enquanto eu vestia a roupa. Achei que o mínimo que poderia fazer era deixar Doutora Patrícia orgulhosa. Apanhei as receitas, prometi que voltaria, e parti, rumo à farmácia, pronto para fazer a lição de casa e dar uma última chance para minha relação mais conturbada: a com o filtro solar. 

Foto: Acervo pessoal

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Cotidiano

Do outro lado da arte

Eu nunca pensei em mim como um artista. A arte sempre esteve ali, à espreita, esperando para ganhar um espacinho na minha vida, mas artista, ARTISTA, isso era outra coisa: era quem aparecia na TV, quem pintava quadros.

Aos 13 anos, lá fui eu aprender a pintar quadros. Passei a chegar na escola com as mãos cheirando a terebintina, os braços sujos de tinta e talvez até um pouco descabelado, mas ter uma maleta de madeira com tintas, solventes e pincéis importados não era suficiente para mascarar o óbvio: minha total inabilidade em pintar qualquer coisa, comprovada insistentemente pelos quadros que minha mãe insiste em deixar pendurados na sala até hoje. “Tá lindo!”.
 
Aos 19, deixei meu prazer em escrever superar meu apreço pela matemática e fui estudar cinema. “Vou ser roteirista!”. Me imaginei impactando a vida de pessoas que jamais conheceria e – muito mais importante – frequentando pré-estreias badaladas, sendo ovacionado, com diversos filmes no currículo, administrando projetos, sendo simpático toda vez que fosse interrompido durante uma refeição para uma foto ou um autógrafo. “O quê? Meu filme mudou sua vida? Que gentileza! Agora preciso ir, o carro está esperando…”. 
 
Aos 25, minha pré-estreia mais badalada havia sido como assessor de imprensa para o megassucesso “A Terra Encantada de Gaya”, uma animação alemã dublada por Sabrina Sato, cujo aniversário não consegui comparecer devido à minha incapacidade de seguir uma Grand Cherokee com meu Fiat Palio pela Serra do Mar. 
 
Aos 30, finalmente recebi aplausos no palco: não por um filme, não por uma peça, mas por ter ajudado dez crianças a encontrar o poder da sua própria voz escrevendo suas próprias histórias, interpretadas por atores escolhidos por elas, enquanto eu observava tudo a distância, ora na plateia, ora na coxia.
 
O impacto na vida de desconhecidos veio com o trabalho voluntário em cidades que jamais pensei visitar e com textos despretensiosos jogados na internet todo mês em meio a memes da Copa, discursos de ódio e vídeos de gatinhos.
 
Mais tarde veio o circo. Começou como uma mera necessidade de não ser sedentário, combinada à aversão a espelhos de academia e seus reflexos. Quando percebi, já sabia que a “fita” chama tecido, “aquele bambolê pendurado” chama lira, o trapézio chama trapézio mesmo e todos eles têm igual poder em gerar hematomas. “É a arte entrando!”. Encontrei uma parceira para dividir a lira, as gargalhadas e as frustrações. Os movimentos de força e equilíbrio foram ganhando um senso estético e aos poucos deixaram de parecer uma tentativa de salvar alguém de um afogamento. Enfim, apresentamos nosso número – sempre na expectativa de não derrubar nem chutar a cara do outro. Ao final, alguém se aproximou: “Ficou lindo! Minha amiga não parava de chorar.”
 
Eu certamente já fiz pessoas chorarem: por algo que escrevi, por algo que fiz, por algo que disse e não deveria, por algo que deixei de dizer ou fazer. Mas jamais pensei que seria capaz de fazer alguém chorar tentando manter o equilíbrio a alguns metros de altura, fazendo força para esconder a dor, manter as pernas esticadas e não derrubar ninguém no chão. 
Acho que isso é arte.

Foto: Pâmela Almeida Resende

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Cotidiano

Fale comigo

Pense na última pessoa com quem você se comunicou. A menos que ela estivesse na sua frente, é provável que você tenha mandando um e-mail, uma mensagem no WhatsApp, marcado em algo no Instagram; pode ter sido um post no Twitter para ninguém em específico, um textão no Facebook, um áudio de oito minutos ou um meme de oito palavras. Seja qual for o formato, acho fascinante observar a agilidade com que a nossa comunicação se transforma.

Há pouco tempo, meu pai, de 88 anos, gravou um vídeo para enviar à sua irmã, de 91, que mora na Itália. “Onde eu nasci não tinha luz elétrica. Não me conformo como as coisas são tão fáceis hoje…”
 
Por outro lado, como alguém que tem as palavras como parte fundamental da profissão, confesso que acho um pouco assustador como a agilidade na comunicação vai assassinando a Língua Portuguesa. É como se vírgulas fossem sempre opcionais, assim como O Uso Da caixa ALTA, e como se todos os acentos tivessem desaparecido com a “regra nova”: aquela instituída na década passada. Isso sem falar nas abreviaturas e nas trocas aleatórias de letras (pq essa diskriminassaum c/ a letra C?).
 
Outro dia minha sobrinha tirava sarro da minha irmã, que não tinha entendido uma mensagem:
 
– Como assim você não sabe o que é ttyl? Você precisa aprender a mandar mensagem de texto.
 
– E você precisa aprender Português…
 
– O que vocês estão estudando em Língua Portuguesa na escola? – perguntei.
 
– Ah, aquela coisa de adjunto adverbial, complemento nominal… Sei lá.
 
– Aprende direito o Português porque isso vai fazer muita diferença na sua vida, seja lá qual for a sua carreira – aconselhei eu.
 
– Eu vou morar fora, não faz diferença – devolveu, com a sagacidade de uma geração que já nasceu conectada. Se isso fosse uma mensagem, minha resposta seria um emoji sarcástico.
 
Mas de todas as maneiras que interagimos atualmente, a que mais me faz refletir são os áudios do WhatsApp. Graças a eles, posso almoçar acompanhado de alguém que está no Canadá ou dirigir como se houvesse alguém no banco do passageiro. Se me dissessem há cinco anos que uma das formas mais comuns de comunicação no futuro seria o equivalente a uma troca de recados na caixa postal, eu daria risada. Tudo o que nos esforçamos no passado para ser instantâneo, agora submete-se ao tempo do outro: vou ouvir o que você tem a dizer no momento que EU quiser. “Como assim fulando está me ligando?!”
 
Uma eterna discussão pode surgir acerca do efeito dessa forma de comunicação entre as pessoas, mas uma coisa me parece certa: ela está nos forçando a ouvir. Quando recebo uma mensagem de áudio, não posso interromper a fala do outro, não posso direcionar seu pensamento, não posso julgar com o olhar: só o que posso fazer é escutar, é respeitar seu ritmo de fala e pensamento para só então me posicionar.
 
E isso é indiscutivelmente um grande presente da tecnologia.
 

Foto: https://www.pxfuel.com/en/free-photo-qlnip

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família, viagem

Apertem os cintos…

Minha avó sempre fazia as coisas do seu jeito, e sempre conseguia o que queria. Uma das coisas que queria era que minha mãe fosse ao menos uma vez na vida a Jerusalém – uma viagem que ela mesma havia feito. Por isso, não me foi de grande espanto descobrir que a viagem que faria com minha mãe à Terra Santa começaria precisamente no data do seu aniversário. “Morreu, mas ainda assim consegue as coisas!” – brincamos.

Uma viagem de 17 dias, com um grupo de 40 pessoas cuja idade média era 75 anos, prometia aventuras – que começaram já no aeroporto: quarenta velhinhas na fila preferencial, atropelando-se umas as outras com seus carrinhos carregados de malas com fitinhas de santos por todos os lados. Menos de 15 horas (e incontáveis detectores de metais) depois, já estávamos cara a cara com o Papa, e com nossos celulares na cara dele. “Onde é que aperta pra filmar?”
 
Visitamos as basílicas papais, os museus do Vaticano, as ruínas romanas e, é claro, as lojinhas. Ao fim de cada dia o desafio era lembrar o que estava em qual igreja. “Onde estava o prego da cruz, mesmo?” Não, lá era o túmulo do Pio XII!”.
 
Ao mesmo tempo em que tentavam conectar-se com o divino, alguns tentavam desvendar o mistério da insônia: teria sido o tiramisù às 11h da noite? O excesso de risoto? O jet lag não foi sequer considerado. Outros indignavam-se com a rudez dos italianos. “Todo mundo grita comigo,” frustrava-se uma. “Eles gritam com todo mundo, é o jeito deles, você não é especial,” explicava a outra.
 
Cinco dias e muitos gelatos depois, cruzamos o Mediterrâneo e chegamos ao Oriente Médio em grande estilo: emperrando a porta giratória do hotel em Tel Aviv. “Este é o banheiro mais limpo de toda Europa!” clamou uma. “Estamos na Ásia,” corrigiu outra. Para a alegria da gerência, após o café da manhã mais farto de toda viagem (“ah, não tem um pãozinho de queijo?”) caímos mais uma vez na estrada no que seria o início de um ritmo enlouquecido pela Terra Santa.  
 
A cada lugar sagrado, uma aventura, dividida com turistas de todo planeta com seus próprios guias e radinhos. “Não tô ouvindo nada, ele ‘tá falando alguma coisa?” “Tem que ligar!” “Mas tá ligado!” “Então acabou a bateria… Falei pra desligar à noite!” Cruzamos fronteiras rodoviárias que nos fizeram ter saudades da Estação da Sé e viajamos oito horas pelo deserto para visitar uma das novas maravilhas do mundo (ou para ficar esperando do lado de fora do parque, dependendo do cansaço…). Testemunhamos o milagre da comunicação entre mineiros e árabes. (“Ela quer uma sacolinha. Sa-co-li-nha.”) Boiamos e nos lambuzamos com a lama do Mar Morto, e de lambuja roubamos os tênis de alguém. “Ué, não é de nenhum de vocês? Ah, agora tá longe pra devolver, deixa pra lá…”. Caminhamos pelos templos onde Jesus pregava, pela gruta onde Jesus nasceu, pelo local onde Jesus teve a última ceia, pelo mar (que não é mar) onde Jesus andou sobre as águas, pelo rio onde Jesus foi batizado, pelas pedras por onde Jesus pode ou não ter caminhado. Invadimos as ruas de Jerusalém com nossos lencinhos cor de laranja que uma guia insistia em chamar de amarelo e com um guia que parecia estar num reality show onde vence quem chega primeiro; nos acotovelamos pelas estreitas escadarias da Via Sacra, apinhamo-nos por horas como adolescentes num show de rock para visitar o Santo Sepulcro – por quatro segundos.
 
E, sobretudo, tivemos grandes debates filosóficos.
 
As oliveiras do Monte das Oliveiras podem ser consideradas as mesmas da época de Jesus? Tudo bem ler a Bíblia pelado? Maria morreu virgem? Como pode aquela moça fazer uma leitura na missa assim, com os braços de fora? Os albinos são albinos porque só têm glóbulos brancos? Acho que Jesus era magro porque andava muito…
 
Duas semanas e seis hotéis depois, estávamos de volta ao aeroporto de Roma (por oito longas horas). Alguns sem voz, outros sem energia, outros sem saúde, outros sem dinheiro, mas todos cheios de reflexões. É impossível ficar indiferente a uma viagem desse tipo. Cada um à sua forma, tentávamos ser um pouco melhor; buscávamos uma conexão com Deus revivendo um pouco da Sua passagem pela Terra.
 
Particularmente, não encontrei Deus nos templos em ruínas, nas calçadas milenares ou nas relíquias sagradas. Ao contrário, acho que Deus não estava nas coisas: estava na paciência em explicar pela quarta vez como conectar o Wi-Fi no ônibus; nas gargalhadas no quarto de hotel ao relembrar os percalços do dia; no cuidado com os mais velhos ao descer escadas ou subir no ônibus atrás de um guia em disparada. E, principalmente, sentado na poltrona 34D do avião, rindo da aeromoça que tropeça na mala que um passageiro recusa-se a tirar do corredor.

Foto: Acervo pessoal

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Cotidiano, viagem

Conexões

Diversos estudos dizem que o ser humano busca, acima de tudo, pertencer e conectar-se. Faz sentido. Conectar-se com o outro é uma das jornadas mais fascinantes do nosso passeio por este planeta. Alguns entram na nossa vida com mais intensidade, alguns ficam por mais tempo, alguns compartilham os momentos mais íntimos, outros os mais alegres, outros os mais marcantes… É como se uma parte de todos que passaram pela minha vida tivesse ficado em mim e, da mesma forma, houvesse pedaços de mim espalhados pelo mundo, em busca de novas conexões.

E essas conexões ocorrem hoje das maneiras mais distintas, intensas e inusitadas. Nosso ritmo é tão alucinante que no tempo que leva para abrir o Instagram você já está íntimo de alguém. Basta ter seu nome e sobrenome e já posso saber onde você passou as férias, com quem jantou, quando nasceu, que música ouve. A vida íntima já não é, necessariamente, privada.
 
Aceleramos os relógios, e as relações parecem seguir no mesmo fast forward. Há não muitos anos, você se interessava por alguém, pedia o telefone, ligava uns dias depois, conversava, ligava outro dia, marcava algo. Semanas, meses se passavam até que o outro fizesse parte da sua vida. A intimidade era construída sobre os pilares do tempo. Quisemos tanto comprimir esse tempo que conseguimos: criamos as mais diversas plataformas para conectar pessoas com os mesmos interesses em apenas um clique. Viramos perfis em busca de matches. Você conhece alguém num aplicativo de relacionamento e por dois, três dias, outra pessoa invade sua vida com toda sua história, dúvidas, anseios, expectativas. Em 72 horas, ela sabe mais de você do que muitos à sua volta — e vice versa. Você compartilha seu cotidiano por fotos, áudios, textos. Vocês, enfim, se encontram, compartilham o que a conexão digital não permite — o jeito, o cheiro, a presença. Mas e depois? Como manter uma intimidade que atingiu o pico em três dias sem qualquer alicerce?
 
Por outro lado, será possível manter uma intimidade de anos atrás apenas por um fiapo digital? Em 2000, fiz um amigo que encontrava praticamente todos os dias durante cinco meses. Éramos intercambistas na Austrália e, desde que nos conhecemos na conexão em Auckland, nos tornamos amigos. Morávamos no mesmo bairro, estudávamos na mesma escola, íamos às mesmas festas: após dezesseis anos vivendo no mesmo lugar, com as mesmas relações, ele era meu primeiro grande novo amigo. Terminado o programa, voltamos ao Brasil: eu a São Paulo, ele a Porto Alegre.
 
Passaram-se oito anos até que nos encontrássemos novamente.
 
Pelos dois dias que ele esteve de passagem em São Paulo, atualizamos nossas vidas e saboreamos a amizade que poderia ter sido e que não foi. Ou será que foi? Será que cinco meses de intimidade são suficientes para segurar uma amizade de Facebook por uma vida inteira?
 
Por outro lado, será que existe uma intimidade intrínseca entre pessoas que mal se conhecem? Aos cinco anos de idade, recebi a visita de familiares da Itália, entre eles um primo de 13 anos. Não fossem as fotos dessa visita, não saberia sequer que já havíamos interagido alguma vez na vida. Quase trinta anos depois, nos reencontramos em Viena, onde ele vive. Sou recebido por esse completo estranho, que me leva para comer a que ele julga ser a melhor pizza da cidade. Passamos horas atualizando nossos trinta anos de vida por países diferentes em uma conversa que termina com a promessa de um novo reencontro. Em três dias, estávamos na sua cozinha, comendo spaghetti ao molho gorgonzola, conectados com familiares em todo o mundo pelo computador, antes de eu passar a noite no sofá. Completos estranhos e, ao mesmo tempo, primos íntimos de longa data.
 
Mas sempre que penso em conexão, me lembro de um episódio de muitos anos atrás que nada tem a ver a com o que normalmente associamos com intimidade.
 
Eu estava no aeroporto. Era provavelmente uma conexão a caminho de volta a Los Angeles. À minha frente, uma mulher do alto de seus quarenta anos chorava discretamente; ao seu lado, um homem da mesma idade, provavelmente seu marido, a consolava em silêncio, segurando sua mão. Ela respirou algumas vezes e parou de chorar. Alguns instantes se passaram, e agora era ele quem chorava, e ela quem o consolava. Não era um choro desesperado, mas um choro resignado, uma tristeza profunda para qual a única solução era deixar-se entristecer. Sem saber quem era aquele suposto casal ou o que havia acontecido para deixá-los assim, me conectei com sua dor e me entristeci também.
 
Da mesma forma aleatória que entraram na minha vida, os dois saíram algumas horas depois, rumo a sabe-se lá que cidade americana, deixando em mim um pedaço da sua intimidade: uma intimidade que não exigia palavras, apenas a presença e o silêncio; uma intimidade que expunha sua dor mais íntima a um completo estranho — eu.
 

Foto: Shutterstock

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Cotidiano, viagem

As coisas mais simples

Quando eu era criança, um dos meus programas favoritos era ir ao McDonald’s: um McChicken, uma batata média, um guaraná e um nuggets de seis com molho caipira e eu estava no céu. Se fosse seguido de um cinema, então, o dia ganhava o status de melhor dia do ano.

Lembro o dia em que um vizinho comentou, todo animado, que almoçava toda terça-feira no McDonald’s porque ficava até tarde na escola. Outro vizinho, mais velho e mais cínico, devolveu: “Eu almoço quando quiser”.
 
Eu logo virei o outro vizinho. Comer no McDonald’s passou a ser a opção C e ir ao cinema virou parte da rotina. Vieram novas experiências, novas ambições e, sem perceber, foi ficando cada vez mais trabalhoso ter a mesma satisfação que um mero fast food me trazia aos doze anos de idade.
 
Ano passado, fui ao Burger King gravar um vídeo para um cliente. Precisávamos registrar pessoas comendo, e meu chefe disse: “Podem pedir o que quiserem”. Olhei para minha colega e percebi que ela tinha nos olhos o mesmo brilho que eu. Parados em frente ao balcão, era como se eu voltasse a ser aquela criança prestes a pedir um McChicken. Nós rimos. Ambos, felizmente, podiam tranquilamente bancar aquela refeição, mas o fato de podermos escolher hambúrgueres e batatas fritas ao bel-prazer nos trouxe uma alegria tão inocente, tão simples. E como é bom alegrar-se com as coisas simples…
 
Recentemente estive em uma cidade do interior de São Paulo, junto a algumas dezenas de jovens voluntários, para uma tarefa ousada: construir uma capela em três dias. Toda comunidade se movimentou para receber e alimentar as setenta bocas famintas. A cada dia, depois de horas de trabalho sob o sol, a refeição era sempre um dos momentos mais esperados. Não havia luxo, não havia frescura: havia o carinho de pessoas que passaram dias buscando doações de alimentos e horas preparando panelas e panelas de comida para alimentar nossos corpos suados.
 
Você entra na fila, pega o seu prato, equilibra um garfo ou uma colher — e com sorte uma faca — e observa os rostos sorridentes amontoando arroz, feijão, farofa, macarrão, carne, batata, cenoura, tomate e salada a sua frente. Com a outra mão, você pega um copo de plástico com suco e um guardanapo e procura uma sombra: pode ser uma cadeira, um banco, um pedaço de madeira ou um espaço no muro onde você simplesmente possa apoiar as costas. Você tenta explicar para o cachorro vira-lata que aquela comida é só para você e usa todo o equilíbrio adquirido no alongamento da manhã para se sentar sem derrubar o suco, a salada, o garfo e o guardanapo. O prato de vidro está quente com os dois quilos de comida, então você usa o capacete no colo como apoio e se prepara para dar a primeira garfada sem derrubar um grão de arroz.
 
Essa será a melhor refeição da sua vida.
 
Você dá risada ao se lembrar da vez em que reclamou da falta de um jogo americano no restaurante; você termina de comer, alguém gentilmente aparece para retirar seu prato, repor seu suco ou oferecer uma gelatina. Você tem meia hora até voltar para a obra e não pensa duas vezes: estica as pernas ocupando toda sombra do muro de cimento, tira os sapatos, apoia a cabeça no capacete e fecha os olhos. Você está no céu. Minutos depois você acorda mais descansado do que poderia imaginar, pronto para voltar para o sol e carregar mais vigas de madeira.
 
O ritmo da minha vida — e sei que o da maioria das pessoas — é sempre muito agitado. Há sempre algum lugar para ir, algo importante a fazer, algo novo a conquistar. E não vou mentir: eu gosto disso. Gosto de ter metas, de ter ambições, de tentar ser melhor, estar melhor.
 
Mas é um privilégio, nesse ritmo louco, ter a chance de parar por um instante e lembrar que o chão de asfalto pode ser tão macio quanto um travesseiro de plumas.
 

Foto: Acervo pessoal

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Cotidiano

Feliz dia novo

Durante mais de 20 anos da minha vida, passei a virada do ano exatamente no mesmo lugar, com as mesmas pessoas: minha família. A casa onde tios, primos e afins reuniam-se era situada em um lugar estratégico onde era impossível ver qualquer tipo de fogos, e a proximidade com uma favela sempre deixava dúvidas sobre o teor dos estouros. Foram fogos? Foram tiros?

Havia uma superstição de que os desertores sofreriam as consequências. “Vai pra praia com os amigos? Certeza que vai chover!” “Fulana foi viajar com o namorado, acredita?! Aposto que vão terminar!” A primeira vez que passei o réveillon longe da família foi em 2007, quando fui a Fortaleza com a namorada e alguns amigos. Tenho certeza que o motivo de eu ter passado as últimas horas do ano vomitando foi o excesso de comida, e não uma maldição. O namoro terminou algumas semanas depois. 
 
Particularmente, nunca dei tanto peso para a data em si, talvez porque eu tenha a sorte de passar praticamente o ano todo rodeado por pessoas que gosto e de não precisar de datas definidas para reuni-las.
 
Ou talvez porque eu reconheça a arbitrariedade dessa data.
 
Em algum ponto da história, decidimos que uma posição específica da Terra em relação ao Sol seria um marco; que uma vez que nossa bola azul cruzasse essa linha de chegada imaginária, daríamos um grande reset no jogo de seus habitantes. Aí, em 1582, o Papa Greg e sua turma perceberam que estava tudo errado e decidiram dar uma ajustadinha nessa linha, puxando-a uns dez dias para trás. “Vamos pular do dia 4 de outubro direto pro dia 15?” “Bora!”
 
Eu não teria feito aniversário em 1582…
 
Cada país resolveu adotar o calendário quando estava a fim, o que levou alguns anos. Tipo uns 350. Mas não foi só isso. Para evitar novos grandes ajustes no futuro, resolveram calcular direito essa história de ano bissexto, afinal, o ano trópico não tem EXATAMENTE 365 dias, mas 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos.
 
(Parênteses aqui. Uma busca rápida na internet vai mostrar que são considerados dois cálculos para a duração do ano: o ano sideral, que usa as estrelas como referência, e o ano trópico, que leva em consideração as estações do ano. E, não, eles não têm a mesma duração. VAI VENDO!)
 
Pois bem, com esse negócio de um ano ter 365 dias, mais um quarto de dia, decidiram enfiar um dia a mais em fevereiro a cada quatro anos. Só que, de novo, esse “um quarto de dia” não é EXATAMENTE um quarto de dia. E como a gente compensa esses minutinhos que a gente está colocando de brinde a cada ano? Fácil: a gente cancela o ano bissexto a cada 100 anos, nos anos múltiplos de 100!
 
“Nem vem! O ano 2000 foi bissexto que eu lembro muito bem. Teve enchente, teve Olimpíada e teve 29 de fevereiro, sim!” — você pode estar pensando.
 
É que a coisa não para por aí: a gente cancela o ano bissexto nos anos múltiplos de 100… A MENOS que eles sejam, também, múltiplos de 400.
 
Olha. Que. Simples. Tudo para manter uma linha imaginária mais ou menos no mesmo lugar todo ano.
 
Seja como for, é fascinante pensar como ciclos arbitrários têm o poder de nos inspirar, de nos fazer refletir, de criar novas metas e ressuscitar velhos sonhos. E também de nos dar uma folga. Afinal, seria excruciante andar por aí carregando décadas de decepções e escolhas erradas nas costas, sem poder encostá-las ali num cantinho de dezembro antes de seguir adiante.
 

Fico pensando como, todos os anos, mais ou menos no mesmo ponto do universo, o dia 1º de janeiro vai surgindo no horizonte, timidamente, de hora em hora por todo o planeta, trazendo logo atrás um ano carregado de sonhos, alheio ao mundo de expectativas colocadas sobre ele. 

Foto: Wikipedia

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