Cotidiano, viagem

A grande beleza

Uma das informações mais irrelevantes a meu respeito é o meu signo. Dentre as características aleatoriamente atribuídas a mim pela posição do planeta no dia do meu nascimento estão a indecisão, a busca por harmonia e a apreciação pelo belo. É verdade que não posso refutar nenhum desses atributos, mas convenhamos que dizer que alguém gosta do que é belo não é lá dizer muita coisa, já que dizer o oposto seria no mínimo estranho. “Que lindo esse jogo de toalhas! Jussara vai odiar.”

Talvez tenha sido justamente a busca pelo belo – consciente ou não – que me levou a aceitar o convite para um concerto de música clássica no Hollywood Bowl numa tarde ensolarada de 2010. Foi lá que conheci Paul, um vienense que estudava direção de cinema e que, descobriria depois, havia se formado em história da arte em Paris: uma informação que eu traria à tona nos anos seguintes em qualquer oportunidade de ridicularizá-lo. “Eu sei o suficiente pra parecer que sei muito mais”, dizia ele enquanto me explicava pseudo-pretensiosamente sobre alguma obra de arte moderna. Eventualmente viajamos para o Alasca e, em meio a partidas de xadrez, tentamos chegar a uma definição importante: afinal, o que é arte? “É tudo aquilo que provoca emoção”, concluímos a princípio. Mas o pôr-do-sol à meia noite por trás das montanhas nevadas dizia algo diferente: não dava para negar que aquilo provocava emoção, que aquilo arrebatava os sentidos, mas, não, aquilo não era arte. Era a natureza. Era Deus. Era Algo: mas não era arte. “Arte é tudo aquilo criado pelo Homem que provoca emoção”, foi a nova tentativa. Mas ainda não era isso. “Assassinato não é arte”, refletimos. Então “arte é tudo aquilo criado pelo Homem que provoca emoção, mas que não interfere diretamente na realidade.” Mas como dizer que a arte não interfere na realidade?

Há alguns anos, depois de muita insistência, fui convencido a assistir a uma peça de cinco horas de duração. “Eu sei, eu sei, mas você nem sente passar, eu juro!”, dizia minha irmã, entusiasmada. E ela tinha razão. Tanta razão que quando Os sete afluentes do rio Ota voltou aos palcos anos depois, lá estava eu novamente, sendo arrebatado por movimentos de luz, e som, e dança, e drama, e beleza. E como dizer que aquilo não interferia na realidade? Na minha realidade? Mal sabia eu que em poucos meses o belo deixaria de dar as caras por tanto tempo…

Em 2014 estive em Viena para visitar Paul e tive a chance de explorar a cidade sozinho enquanto ele trabalhava. Sem saber a fundo o que a capital austríaca oferecia em termos culturais, uma das minhas primeiras paradas foi o impronunciável Kunsthistorisches Museum: o museu de história da arte. Foi lá que dei de cara com a obra de arte mais impressionante que vi até hoje. Minha memória me diz que na entrada do museu há um saguão com um altíssimo pé direito e um guichê de cada lado; à frente, há um grande biombo – ou seria uma parede? – que impede que vejamos o que está do outro lado. Comprei meu ingresso e segui pela lateral do biombo, para adentrar o museu. Ali notei que as pessoas paravam por um instante, boquiabertas, observando o que estava à sua frente. Segundos depois, eu seria uma delas: à minha frente estava um lance de escada de mármore branco; no topo, entre lances de escada à esquerda e à direita que levavam ao segundo andar do museu, impunha-se a escultura de Antonio Canova: Teseu vencendo o centauro. Esculpida em mármore branco, a obra retrata Teseu inclinado sobre o centauro, com o joelho esquerdo pressionando o peito da figura mitológica, a mão esquerda apertando seu pescoço e a mão direita com um bastão pronto para atacá-lo. A criatura, metade homem, metade cavalo, tem uma expressão de horror, as patas dobradas sob o torso, a mão esquerda apoiada no chão e os dedos da mão direita fincados no braço de Teseu. Tanta vida num pedaço de pedra… A Europa ainda me tiraria o ar em outras ocasiões – o brilho dourado de O beijo, que parecia saltar da parede preta exclusiva para ele, a diminuta Mona Lisa, escondida atrás de fitas de segurança, vidros blindados e turistas orientais –, mas o impacto da primeira obra do primeiro museu que visitei na Áustria nunca foi superado.

Outro dia a internet me fez cruzar com o antigo professor de teatro da escola onde estudei. Nunca fiz aulas de teatro, mas me lembrei de imediato de uma peça montada por sua turma, a qual assisti no auditório do colégio. Sem ter nem sequer pensado naquela montagem cômica por mais de vinte anos, algumas cenas voltaram com clareza à minha mente. Uma delas, em particular, envolvia uma discussão entre uma personagem e sua irmã mais velha que, irritada, grita: “Puta que pariu, que merda!”, deixando a pequena em choque. É refrescante pensar que a arte fica na gente, que mesmo anos, décadas depois, aquilo que é belo, aquilo que é arte fica guardado em algum lugar da memória, mesmo que a gente não se lembre, para que a gente possa acessar nos momentos de escuridão, em que “puta que pariu, que merda!” não poderia definir melhor o tempo presente.


Paul e eu temos a tradição de falar pelo Skype uma vez ao mês para mantermos nossa amizade viva. No próximo encontro vou dizer a ele que já tenho uma definição: arte é tudo aquilo criado pelo Homem que provoca emoção e torna a realidade suportável.

Foto: Tabuleiro de xadrez em Kachemak Bay, por Paul Schwind.

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Cotidiano

Do outro lado da arte

Eu nunca pensei em mim como um artista. A arte sempre esteve ali, à espreita, esperando para ganhar um espacinho na minha vida, mas artista, ARTISTA, isso era outra coisa: era quem aparecia na TV, quem pintava quadros.

Aos 13 anos, lá fui eu aprender a pintar quadros. Passei a chegar na escola com as mãos cheirando a terebintina, os braços sujos de tinta e talvez até um pouco descabelado, mas ter uma maleta de madeira com tintas, solventes e pincéis importados não era suficiente para mascarar o óbvio: minha total inabilidade em pintar qualquer coisa, comprovada insistentemente pelos quadros que minha mãe insiste em deixar pendurados na sala até hoje. “Tá lindo!”.
 
Aos 19, deixei meu prazer em escrever superar meu apreço pela matemática e fui estudar cinema. “Vou ser roteirista!”. Me imaginei impactando a vida de pessoas que jamais conheceria e – muito mais importante – frequentando pré-estreias badaladas, sendo ovacionado, com diversos filmes no currículo, administrando projetos, sendo simpático toda vez que fosse interrompido durante uma refeição para uma foto ou um autógrafo. “O quê? Meu filme mudou sua vida? Que gentileza! Agora preciso ir, o carro está esperando…”. 
 
Aos 25, minha pré-estreia mais badalada havia sido como assessor de imprensa para o megassucesso “A Terra Encantada de Gaya”, uma animação alemã dublada por Sabrina Sato, cujo aniversário não consegui comparecer devido à minha incapacidade de seguir uma Grand Cherokee com meu Fiat Palio pela Serra do Mar. 
 
Aos 30, finalmente recebi aplausos no palco: não por um filme, não por uma peça, mas por ter ajudado dez crianças a encontrar o poder da sua própria voz escrevendo suas próprias histórias, interpretadas por atores escolhidos por elas, enquanto eu observava tudo a distância, ora na plateia, ora na coxia.
 
O impacto na vida de desconhecidos veio com o trabalho voluntário em cidades que jamais pensei visitar e com textos despretensiosos jogados na internet todo mês em meio a memes da Copa, discursos de ódio e vídeos de gatinhos.
 
Mais tarde veio o circo. Começou como uma mera necessidade de não ser sedentário, combinada à aversão a espelhos de academia e seus reflexos. Quando percebi, já sabia que a “fita” chama tecido, “aquele bambolê pendurado” chama lira, o trapézio chama trapézio mesmo e todos eles têm igual poder em gerar hematomas. “É a arte entrando!”. Encontrei uma parceira para dividir a lira, as gargalhadas e as frustrações. Os movimentos de força e equilíbrio foram ganhando um senso estético e aos poucos deixaram de parecer uma tentativa de salvar alguém de um afogamento. Enfim, apresentamos nosso número – sempre na expectativa de não derrubar nem chutar a cara do outro. Ao final, alguém se aproximou: “Ficou lindo! Minha amiga não parava de chorar.”
 
Eu certamente já fiz pessoas chorarem: por algo que escrevi, por algo que fiz, por algo que disse e não deveria, por algo que deixei de dizer ou fazer. Mas jamais pensei que seria capaz de fazer alguém chorar tentando manter o equilíbrio a alguns metros de altura, fazendo força para esconder a dor, manter as pernas esticadas e não derrubar ninguém no chão. 
Acho que isso é arte.

Foto: Pâmela Almeida Resende

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