Cotidiano, viagem

A grande beleza

Uma das informações mais irrelevantes a meu respeito é o meu signo. Dentre as características aleatoriamente atribuídas a mim pela posição do planeta no dia do meu nascimento estão a indecisão, a busca por harmonia e a apreciação pelo belo. É verdade que não posso refutar nenhum desses atributos, mas convenhamos que dizer que alguém gosta do que é belo não é lá dizer muita coisa, já que dizer o oposto seria no mínimo estranho. “Que lindo esse jogo de toalhas! Jussara vai odiar.”

Talvez tenha sido justamente a busca pelo belo – consciente ou não – que me levou a aceitar o convite para um concerto de música clássica no Hollywood Bowl numa tarde ensolarada de 2010. Foi lá que conheci Paul, um vienense que estudava direção de cinema e que, descobriria depois, havia se formado em história da arte em Paris: uma informação que eu traria à tona nos anos seguintes em qualquer oportunidade de ridicularizá-lo. “Eu sei o suficiente pra parecer que sei muito mais”, dizia ele enquanto me explicava pseudo-pretensiosamente sobre alguma obra de arte moderna. Eventualmente viajamos para o Alasca e, em meio a partidas de xadrez, tentamos chegar a uma definição importante: afinal, o que é arte? “É tudo aquilo que provoca emoção”, concluímos a princípio. Mas o pôr-do-sol à meia noite por trás das montanhas nevadas dizia algo diferente: não dava para negar que aquilo provocava emoção, que aquilo arrebatava os sentidos, mas, não, aquilo não era arte. Era a natureza. Era Deus. Era Algo: mas não era arte. “Arte é tudo aquilo criado pelo Homem que provoca emoção”, foi a nova tentativa. Mas ainda não era isso. “Assassinato não é arte”, refletimos. Então “arte é tudo aquilo criado pelo Homem que provoca emoção, mas que não interfere diretamente na realidade.” Mas como dizer que a arte não interfere na realidade?

Há alguns anos, depois de muita insistência, fui convencido a assistir a uma peça de cinco horas de duração. “Eu sei, eu sei, mas você nem sente passar, eu juro!”, dizia minha irmã, entusiasmada. E ela tinha razão. Tanta razão que quando Os sete afluentes do rio Ota voltou aos palcos anos depois, lá estava eu novamente, sendo arrebatado por movimentos de luz, e som, e dança, e drama, e beleza. E como dizer que aquilo não interferia na realidade? Na minha realidade? Mal sabia eu que em poucos meses o belo deixaria de dar as caras por tanto tempo…

Em 2014 estive em Viena para visitar Paul e tive a chance de explorar a cidade sozinho enquanto ele trabalhava. Sem saber a fundo o que a capital austríaca oferecia em termos culturais, uma das minhas primeiras paradas foi o impronunciável Kunsthistorisches Museum: o museu de história da arte. Foi lá que dei de cara com a obra de arte mais impressionante que vi até hoje. Minha memória me diz que na entrada do museu há um saguão com um altíssimo pé direito e um guichê de cada lado; à frente, há um grande biombo – ou seria uma parede? – que impede que vejamos o que está do outro lado. Comprei meu ingresso e segui pela lateral do biombo, para adentrar o museu. Ali notei que as pessoas paravam por um instante, boquiabertas, observando o que estava à sua frente. Segundos depois, eu seria uma delas: à minha frente estava um lance de escada de mármore branco; no topo, entre lances de escada à esquerda e à direita que levavam ao segundo andar do museu, impunha-se a escultura de Antonio Canova: Teseu vencendo o centauro. Esculpida em mármore branco, a obra retrata Teseu inclinado sobre o centauro, com o joelho esquerdo pressionando o peito da figura mitológica, a mão esquerda apertando seu pescoço e a mão direita com um bastão pronto para atacá-lo. A criatura, metade homem, metade cavalo, tem uma expressão de horror, as patas dobradas sob o torso, a mão esquerda apoiada no chão e os dedos da mão direita fincados no braço de Teseu. Tanta vida num pedaço de pedra… A Europa ainda me tiraria o ar em outras ocasiões – o brilho dourado de O beijo, que parecia saltar da parede preta exclusiva para ele, a diminuta Mona Lisa, escondida atrás de fitas de segurança, vidros blindados e turistas orientais –, mas o impacto da primeira obra do primeiro museu que visitei na Áustria nunca foi superado.

Outro dia a internet me fez cruzar com o antigo professor de teatro da escola onde estudei. Nunca fiz aulas de teatro, mas me lembrei de imediato de uma peça montada por sua turma, a qual assisti no auditório do colégio. Sem ter nem sequer pensado naquela montagem cômica por mais de vinte anos, algumas cenas voltaram com clareza à minha mente. Uma delas, em particular, envolvia uma discussão entre uma personagem e sua irmã mais velha que, irritada, grita: “Puta que pariu, que merda!”, deixando a pequena em choque. É refrescante pensar que a arte fica na gente, que mesmo anos, décadas depois, aquilo que é belo, aquilo que é arte fica guardado em algum lugar da memória, mesmo que a gente não se lembre, para que a gente possa acessar nos momentos de escuridão, em que “puta que pariu, que merda!” não poderia definir melhor o tempo presente.


Paul e eu temos a tradição de falar pelo Skype uma vez ao mês para mantermos nossa amizade viva. No próximo encontro vou dizer a ele que já tenho uma definição: arte é tudo aquilo criado pelo Homem que provoca emoção e torna a realidade suportável.

Foto: Tabuleiro de xadrez em Kachemak Bay, por Paul Schwind.

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Devassos

Tendo passado a grande maioria dos meus trinta e seis anos solteiro, estar em viagens ou eventos sociais acompanhado de amigos e familiares é, para mim, completamente natural. A sociedade, porém, não parece pensar da mesma forma. Isso ficou evidente em uma viagem de três dias que fiz para um hotel no interior de São Paulo com meu amigo Jorge.

Estávamos almoçando, Jorge e eu, quando ele levantou-se para buscar mais comida. Um garoto de uns 10 anos de idade se aproximou e me encarou, curioso. Ele vestia uma camisa do São Paulo e uma chuteira colorida, e tinha um olhar que transmitia, ao mesmo tempo, inocência e sadismo. Descobriria no futuro, sem grande surpresa, que seu nome era Enzo.

— Você é o tio do futebol? — ele perguntou.

Tentei me lembrar da última vez em que eu havia tocado numa bola de futebol, possivelmente em uma brincadeira entre amigos, em 2006. A penúltima certamente havia sido em 1993.

— Não — respondi.

— O que você faz?

— Aqui ou na vida?

Ele refletiu por um instante.

— Aqui.

— Estou de férias, descansando.

— Você namora?

Quem é você? Minha mãe? Por que esse interesse na minha vida afetiva?

— Não.

— Cadê o moço que estava sentado aqui?

— Foi pegar mais comida.

Não é a primeira vez que alguém suspeita que Jorge e eu somos um casal. Não por qualquer característica em particular – apesar de Jorge já ter sido questionado sobre o tamanho de suas golas V, o comprimento de suas bermudas, a estampa de sua sunga –, mas simplesmente porque se dois homens estão juntos, e não estão bebendo, jogando futebol ou arrotando, eles só podem, é claro, estar chupando o pinto um do outro. Jorge não é gay – algo que ele faz questão de deixar claro para as mulheres solteiras ao redor. Aliás, se medíssemos a heterossexualidade de alguém pela quantidade de parceiros do sexo oposto, Jorge seria possivelmente a pessoa menos gay do meu convívio. Dito isso, não é como se ele se importasse com a questão – um dos muitos motivos pelos quais somos tão amigos.

Ser confundido com um casal não é uma novidade para mim. Certa vez, em um bar descolado, um garçom/modelo decidiu que Larissa e eu éramos o par perfeito, a ponto de perguntar para mim qual drink ela queria e nos servir água no mesmo copo. Isso acontece também de maneira ainda mais costumeira – e perturbadora – quando estou com minhas irmãs. Durante anos, fiz aulas de espanhol com uma delas, cinco anos mais velha. Um dia, renovando a matrícula, a secretária tomou coragem e se manifestou:

— Desculpa, posso fazer uma pergunta? Faz muito tempo que eu quero perguntar, mas não tinha coragem.

— Pode falar — respondi, com alguma tensão.

— Vocês são o quê?

Levamos alguns instantes para entender o que ela queria dizer.

— Vocês são casados? — ela esclareceu.

“Eu tenho dezesseis anos! E você sabe disso, porque na ficha que está na sua frente tem minha data de nascimento!”

— Não, nós somos irmãos.

— Nooooossa, eu nunca ia imaginar! Eu via o mesmo sobrenome, mas bem que achava vocês muito novinhos pra serem casados…

Com minha outra irmã – esta, treze anos mais velha – a situação é parecida. Basta entrarmos em qualquer quarto de hotel para encontrarmos uma cama de casal romanticamente decorada. “Olá, é do spa? / Gostaria de marcar duas sessões para hoje à tarde. / Não, não estamos em lua de mel. Quer dizer, espera. Tem desconto?” Agora um homem e uma mulher não podem nem fazer uma massagem esfoliante juntos sem parecerem um casal? Também acontece de estarmos com minhas sobrinhas, de idades treze a dezessete, o que automaticamente nos configura como um casal com três filhas – ou, em dias menos generosos com minha irmã, uma mãe com quatro filhos.

Já quando visito minhas sobrinhas, sua mãe anuncia ao porteiro:

— Pode deixar subir, é meu irmão – “e não meu amante”, é o que fica implícito.


No segundo dia da viagem, Enzo nos encontrou na piscina.

— Você é o tio do futebol? — perguntou, desta vez para Jorge.

— Não.

— O que você faz?

— Estou de férias, descansando.

Eu já sabia o que vinha depois.

— Você namora?

— Não.

Enfim, ele tomou coragem, apontou para nós dois e perguntou o que realmente queria saber:

— Vocês são o quê?

— Amigos — Jorge respondeu.

Não sei se ele resolveu mudar de assunto ou validar a resposta, mas a pergunta seguinte foi direcionada a mim.

— Hoje você não está usando o arquinho?

Era uma época conturbada, em que muitos homens – e mulheres – abandonaram qualquer senso estético, de forma que mullets e raízes brancas repentinamente voltaram à moda. Sendo assim, a forma mais prática de manter meus cabelos apresentáveis à sociedade era usando uma tiara, o que Enzo, suspeitava eu, considerava um artigo feminino.

— É que na piscina não precisa — respondi.

— E esse livro que você tá lendo? É Harry Potter?

Ele apontou para o livro com uma coruja na capa, apoiado sobre uma toalha na borda da piscina. “Vamos Explorar Diabetes com Corujas – ensaios, etc.” era o título, em tradução livre. Escrito por David Sedaris – um autor alcoólatra, homossexual e genial – o livro reúne histórias em primeira pessoa sobre o roubo de tartarugas-bebês, desavenças com estranhos em aeroportos e aventuras sexuais em um trem, entre diversos outros episódios.

— Não, definitivamente não é Harry Potter.

Horas depois, estávamos de volta ao restaurante, Jorge, eu e agora Renata, uma garota que viajava sozinha e a quem Jorge havia deixado claro que não era gay. “Viajando sozinha nesse hotel que só tem velho e família? Certeza que é puta!”, refletiram os pais de Enzo em algum momento. Enzo voltou, dessa vez acompanhado de dois amigos mais novos. “Vem comigo, quero mostrar uma coisa incrível pra vocês!” – ele certamente dissera minutos antes. Os três nos encaravam como quem acompanha pinguins sendo alimentados no zoológico. A equipe de animação do hotel nos olhou da mesa ao lado. Talvez estivessem com ciúmes. “O que eles têm que eu não tenho?”

— Viu, Enzo? Eu chamei ele pra jantar! — disse Renata apontando para Jorge, sugerindo que ela também havia sido vítima do interrogatório afetivo do garoto.

Depois de nos encararem por mais alguns desconfortáveis minutos, o pequeno trio partiu rumo a alguma atividade seguramente menos interessante.

— Hoje cedo ele me perguntou como vocês dormiam — confessou Renata. — “Porque nos quartos só tem uma cama de casal!”

— E você disse que no nosso quarto a cama é de solteiro e que dormimos nus, de conchinha?

Ainda veríamos Enzo mais uma vez naquela viagem. Jorge, Renata e eu conversávamos na recepção quando ele passou com os pais, que levavam as malas para fora.

— Já vai embora? — perguntou Renata.

— Já… — disse ele, decepcionado com o fim das férias.

Seus pais, por outro lado, carregavam o carro aliviados por levarem seu rebento para longe daquele antro, onde atos impronunciáveis eram praticados ao cair da noite na intimidade do quarto 238.

Foto: Thomas Couture“Les Romains de la décadence” (Musée d’Orsay, 1847. Óleo sobre tela, 472 x 772 cm)

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Você quer brincar na neve?

Era primavera. Eu caminhava por uma trilha deserta rumo a uma estação de esqui que já havia encerrado a temporada de inverno, mas o parque ao redor ainda não estava aberto para as visitas de verão. Ao meu lado estava Henning, um engenheiro alemão que, assim como eu, estava em Ushuaia para estudar espanhol. Em certo momento, após uma curva, avistei uma mancha branca e marrom alguns metros adiante.

— Aquilo é neve? — perguntei, empolgado.

Henning deu risada.

— Aquilo é um resto de neve suja que está derretendo.

Tomei aquilo como um “sim” e corri, completamente fascinado, até aquele metro quadrado branco, sujo de terra. Henning, acostumado com neve tanto quanto eu estou acostumado com trânsito, gargalhava, enquanto tirava uma foto minha. Seguimos pela trilha até que ela desapareceu em meio a uma floresta de árvores secas… e entendi porque Henning ria: quilômetros e quilômetros de neve branca e fofa cobriam a montanha até a altura dos joelhos. 

Éramos nós, o silêncio e nenhum outro ser.

Henning estava quase sem voz, tomando antibióticos por uma infecção na garganta e grandes goles de conhaque com mel “que ajudavam a esquentar e a melhorar”.  Entre uma palavra e outra que buscava no pequeno dicionário em sua mochila, Henning me contava sobre sua vida em Köln, sobre sua deficiência na mão esquerda e sobre seu pai, cujo nome traduzia-se como João Joaquim Cozinheiro. 

Foram horas e horas de conversa até percebermos que estávamos perdidos.

Começava a anoitecer, e as indicações da trilha, já escassas devido à neve, agora desapareciam por completo. Escolhemos não entrar em desespero. Com as meias molhadas e os pés congelando — “ahhh, nieve en los zapatos!” — guiamo-nos pela direção da neve derretida que corria rumo às luzes das casas ao pé da montanha.

Passaram-se nove horas desde a partida até a chegada. 

Ficamos muito amigos, Henning e eu. Seguimos viagem, junto a outros novos amigos, rumo ao Norte do país, passando pela Patagônia chilena e pelas paisagens nevadas mais incríveis que já vi. 

Dias depois, dissemos adeus. Nunca mais nos vimos.

É uma coisa engraçada, a neve. Nada mais é do que água, que bebemos, usamos, desperdiçamos todos os dias, mas basta mudar seu estado e mudamos nosso olhar. Há quem ache a coisa mais fascinante do mundo — “tudo branquinho, que lindo!” — há quem prefira a morte — “já teve que tirar a neve do carro pra ir trabalhar às sete da manhã?”; seja como for, o sentimento é passageiro: a neve derrete, e ficam as memórias, tenras ou traumáticas, de um momento que passou.


Onze anos depois viajei com uma amiga que via neve pela primeira vez.

— Aquilo é neve? — ela perguntou de dentro do carro, apontando para uma área branca ao pé da montanha.

Eu segurei a risada.

— Aquilo é um resto de neve suja que está derretendo.

Ela tomou aquilo como um “sim”. Paramos o carro e ela correu, completamente fascinada, até aquele metro quadrado branco, sujo de terra, sem saber que logo estaria em meio a quilômetros e quilômetros de neve branca e fofa que cobriam a montanha até a altura dos joelhos, criando um cenário fascinante que, assim como aquela viagem, duraria apenas mais alguns dias.

Foto: Acervo pessoal

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Turistas

Morar em São Paulo significa, entre muitas outras coisas, estar acostumado à poluição, ao trânsito e a quatro estações em um dia: você sai de casa com frio e chega ao trabalho derretendo; sai de casa de regata e dez minutos depois está na chuva. São Paulo é também a cidade que tem muito de tudo: muito restaurante, muito espetáculo, muita gente, muita enchente. Só o que São Paulo não tem muito são turistas. 

Costumo ouvir que os europeus são rudes com turistas, o que sempre me pareceu uma grande injustiça. “Eles sustentam a cidade! Viajam 30 horas só pra ver um quadro minúsculo ou um prédio velho, como assim não gostam deles?!”, bradava. Até que cheguei à Europa.

Basta visitar qualquer cidade turística para perceber que os invasores estão por toda parte, ocupando calçadas, atrapalhando filas, passando vergonha para tirar fotos e amontoando-se em restaurantes considerados cinco estrelas pelo Trip Advisor

Florença, por exemplo, é uma verdadeira cidade cenográfica: lotada de construções fascinantes e pessoas que não moram ali. Um jovem fiorentino abre a porta de casa e é atropelado por um grupo de chineses com paus de selfie; ele consegue chegar até a esquina, mas é freado por uma família americana de bermuda que toma sorvete (e a calçada): “Oh meu Deus! Este não é o sorvete mais delicioso que você já tomou em toda sua vida, Josh?” O jovem tenta atravessar a rua estreita, mas um jovem casal de mochileiros dinamarqueses que está cruzando a Europa Ocidental a pé com um filho no colo e outro no ombro pede passagem. Como não odiá-los?

Ser turista é também deixar de lado algumas convenções sociais básicas, como não assistir a um espetáculo de música clássica com uma caixa de liquidificador no meio das pernas ou não gritar em igrejas. É também extrapolar todos os limites físicos a fim de aproveitar ao máximo cada segundo longe dos filhos, como fazia Silmara, na fila da Galleria dell’Accademia, com aqueles que deduzi ser sua irmã e seus sobrinhos. 

— Essa cidade é maravilhosa! Além do quê, tudo nasceu aqui. A arte nasceu onde? Em Firenze. Dante Alighieri? Firenze! Aquele outro famoso, gênio, como ele chama…?

— Galileu?

— Não, o outro.

— Leonardo da Vinci?

— Isso! Firenze também! Que lugar! Mas ainda bem que eu não trouxe os meninos. Alberto disse ontem que tava sofrendo lá, que eles não param de discutir. Ah, mas é bom, também, sabe? Assim aprende.

— E a perna, tia, melhorou?

— Ah, eu nem sinto mais. De manhã eu tomo um Tandrilax e já saio pra rua. Tô igual nova.

Os meios de transporte também são ótimos locais para observar turistas em seu habitat natural: o estrangeiro. Enquanto um casal de coreanos tenta descobrir como validar o tíquete do trem, dois argentinos debatem se é mesmo necessário validá-lo, e duas inglesas discutem qual o melhor nome italiano.

— Eu gosto de Lucca.

— Eu gosto de Giulia com G. Adoro como soa diferente de Julia. (Oi?)

O avião é outro ambiente ideal para análises e julgamentos. O A330-900 Neo oferece a decolagem mais silenciosa do mundo, mas nem a Airbus, fabricante da aeronave, nem a Rolls Royce, fabricante das turbinas, contavam com Edneia e Jéssica, na fileira 22, que desafiavam a paz a 10.000 metros de altitude. 

— Olha que dia lindo, Jéssica! Céu de brigadeiro, mesmo! — exclama Edneia, do alto dos seus 60 anos, com um forte sotaque carioca. — O céu se mistura com o mar, olha que lindo! E ali embaixo eu vejo a praia.

— Que praia, Edneia, aquilo não é praia, você tá se confundindo — contraria Jéssica, a mesma idade, o mesmo sotaque. 

— Mas você é foda com P-H, hein, Jéssica? E eu lá não sei reconhecer a praia? Parece que é a primeira vez que eu venho aqui — devolve Edneia, indignada. — Tem sempre que contrariar! Por isso eu nunca mais vou morar com ninguém. Ah, não tenho mais paciência.

— Ah, eu também não. Até se eu for pra um asilo, vou pagar pra não ter ninguém me enchendo o saco.

O avião avança poucas centenas de milhas. — Olha ali fora os carneirinhos! — continua Jéssica. 

— Que diabo de carneirinhos?

— Ah, Jéssica, as nuvens, que parecem uns carneirinhos. Mas tudo que eu falo você implica? Parece que nunca foi criança. Nunca contou carneirinho? 

— Claro que fui criança, mas você é criança demais. Um pouco débil, até. 

— Ah, Jéssica, vai cagar no mato sem papel!

Será que são um casal? 

Começa uma turbulência leve — e eu adoro turbulências. Em um voo diurno de nove horas, a perspectiva de umas bebidas caindo, um carrinho desgovernado, um passageiro em pânico — qualquer situação que tire o tédio! — é bem-vinda. Mas Edneia interrompia o momento com suas teorias aeronáuticas.

— É que a gente tá em cima do mar, aí balança mesmo. Mas o piloto é bom, ele tá desviando a rota um pouquinho pra não balançar tanto. Assim que a gente chegar em Mossoró, que já é terra, aí para, você vai ver. 

— Como você sabe disso, Edneia?

— É só olhar no mapa, Jessica, olha aí. Não tá acreditando? E, também, a gente tá em cima da asa, então balança mais porque qualquer lado que mexe, a asa pesa.

— Ih, preciso pegar meu remédio, mas tá na bolsa ali em cima.

— Não pode levantar agora, Jessica, não tá vendo o aviso do cinto?

— E por acaso eu falei que vou pegar AGORA? Eu só falei que preciso pegar, só isso. Eu sigo as regras.

Edneia ri. — Tá bom, Jessica. Logo você? Conta outra!

— As de segurança eu sigo, sim!

A turbulência termina. Elas não.

— Tava pensando aqui, Edneia, esse roteiro que a gente fez foi um caminho meio merda, né? A gente foi de Madri pra Copenhague, pra Hamburgo, pra Roma, pra Lisboa… Olha quanta volta. E eu achei os alemães tão grossos! Só porque parei ali um instantinho já ficavam: “vai, anda, tem fila, não pode parar!”

— Hein? O que você falou?

— Os alemães, ali em Hamburgo.

— O que que foi, Jessica?

— Mas que saco, tá surda?

— Não tá vendo que eu tô escutando o filme, Jéssica?! Aproveita pra ver um filme você também. Ainda tem três horas de voo!

— E eu lá tenho paciência pra ver filme? Na ida assisti 007. Achei tão babaca.

— Ah, isso é verdade, tem razão. 

Penso em também assistir a um filme, mas a realidade é interessante demais para que eu busque a ficção.

Quando enfim pousamos, as duas aplaudiram o brilhantismo do piloto, apanharam suas malas e partiram, uma para cada lado, em direção à vida real.

Nunca vou saber a relação entre as duas — seriam irmãs? amigas de infância? colegas de viagem? — mas esta é uma das belezas de viajar: sejam lugares, sejam pessoas, há sempre muito mais ali do que podemos absorver. A gente revela o que quer e capta o que consegue. O resto a gente inventa.


Quando estive em Paris há alguns anos, tentei ao máximo não cometer os dois piores crimes: falar diretamente em inglês com um atendente e parecer um turista. Comentei com meu anfitrião todas as minhas técnicas para me camuflar em meio aos parisienses e não ser alvo de batedores de carteiras e golpistas em geral — como recomendam as placas e sinais sonoros espalhados pelos pontos turísticos —, mas ele disse que meu esforço era em vão:

— Não dá pra disfarçar: os turistas caminham apreciando a cidade. Pra vocês, tudo é lindo.

Talvez isso não seja assim tão terrível.

Foto: Acervo pessoal

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Um dia na história contemporânea

Esta semana tive de ir ao consulado italiano solicitar a emissão de um novo passaporte. Não é primeira tentativa. Ano passado estive no mesmo local, porém um registro desatualizado de endereço me fez voltar ao final da fila e aguardar por um novo agendamento – meses depois.

Sabendo que o local não permite o uso de celulares, vou munido de um livro – Sapiens – que leva o ousado (e acertado) subtítulo de Uma Breve História da Humanidade. Apanho minha senha – 78 – e tomo assento em meio a uma miríade de descendentes de italianos com suas respectivas pastinhas, sonhos e medos. 
 
― As senhas para passaporte serão chamadas por voz, em grupos de dez ― informa o segurança.
 
Ponho-me a ler sobre os Homo sapiens caçadores-coletores de 50 mil anos atrás: como se organizavam, como se alimentavam e como nossa estrutura foi se adaptando agora que não precisamos mais fugir de leões ou sentir o cheiro da chuva. 
 
― Senhas 40 a 50 ― anuncia a voz, cerca de meia hora depois.
 
Faço uma rápida conta e percebo que passaria muito mais horas ali do que o previsto. Uma senhora ao meu lado, com a senha 81, também percebe e bufa, antes de voltar para sua leitura: Abílio – Determinado, Ambicioso, Polêmico.
 
Se por um lado o Homo sapiens é um ser extremamente adaptável que conseguiu dominar outras espécies e povoar toda a Terra, por outro ainda resta adaptar-se a um ambiente fechado, sem ar-condicionado e sem acesso à tecnologia. Observar pessoas em tais condições é como participar de um experimento sociológico: um grupo de Homo sapiens do mundo atual é teletransportado para um saguão em 1994, pré-internet móvel, sem ar-condicionado, sem televisão, apenas com uma máquina de foto instantânea e uma de salgadinhos, bolachas e bebidas, que aceita exclusivamente notas de dois e cinco reais, e são forçadas a esperar. 
 
― Senhas 50 a 60!
 
Alguns dormem, outros rabiscam num envelope, outros leem, outros ousam interagir com o conterrâneo ao lado, e outros – sobretudo crianças, mas não apenas – choram. Entreter duas crianças pequenas que aguardam há horas sem poder lançar mão de uma Peppa Pig ou uma Galinha Pintadinha é um desafio para o qual o Homo sapiens não teve tempo de se preparar. 
 
Uma moça com um rabo de cavalo, que fez sua cidadania em Assis, mas que passava mais tempo na Toscana, e que agora estava no Brasil, mas talvez se mudasse para Malta em março, pergunta à atendente onde registrar seu endereço.
 
― É que ela tem uma carreira muito internacional ― explica o marido, com sotaque italiano.
 
A funcionária dá as instruções.
 
― Seu italiano é muito bom! ― diz ele.
 
― É que eu sou italiana ― diz ela.
 
― Senhas 60 a 70!
 
Mais um grupo sobe. Sinto fome, mas não posso caçar, nem coletar, nem comprar um Fandangos na maquininha porque usei minha última nota de 5 reais para comprar uma água. O consulado fecha em cinco minutos e, se sair, não posso voltar. Bebo água – dizem que inibe o apetite.
 
Volto ao livro e descubro que é difícil saber ao certo como viviam as sociedades de 40 mil anos atrás. Enquanto alguns fósseis encontrados indicam grupos que sofreram mortes violentas, outras regiões parecem revelar fósseis mais pacíficos. Começo a imaginar o quanto levaria para que esse grupo no saguão em 1994 começasse a guerrear por um assento, uma senha mais baixa, um pacote de Oreo. “O calor e o tédio podem levar o homem a loucura”, divago.
 
― Senhas 70 a 80!
 
Enfim! Subo ao segundo andar e aguardo ser chamado. Uma senhora de vestido azul suplica a um funcionário de cavanhaque: 
 
― Moço, faz vinte anos que estou tentando tirar esse documento! Não é possível que este comprovante de endereço não sirva. Ele é válido em qualquer lugar do Brasil!
 
― Mas aqui é a Itália. 
 
Um rapaz de óculos entrega os documentos de forma organizada a uma funcionária de longos cabelos loiros.
 
― Essa hora no fim do expediente é sempre melhor. Os mais atrapalhados sempre vêm cedinho ― conta ela.
 
Esboço um sorriso ao pensar na sua inocência em achar que conseguimos ESCOLHER nossos horários. Você passa dias tentando ligar para o número de agendamento. Alguém atende. Você abre um vinho para celebrar.
 
― Tenho disponível dia 25, às 10h, pode ser?
 
― Tá ótimo! É o casamento da minha irmã, mas ela vai entender. Ela arranja outro padrinho e, se der, ainda chego para a festa!
 
― Senha 78!
 
Vou até a mesa indicada e saco meus documentos com aquela tensão típica que só autoridades internacionais são capazes de elicitar.
 
― Esta foto não deveria estar colada. E esta assinatura deveria ter sido feita na minha frente ― diz o funcionário com a naturalidade de quem pede um pão de queijo na padaria.
 
― Eu tenho outras fotos! Eu tenho um formulário em branco! Eu te dou um abraço! Não me manda embora!
 
Ele diz que está tudo bem, confere os documentos, pede novas assinaturas. 
 
― Você precisa viajar nos próximos 40 dias?
 
― Infelizmente não.
 
Ele pega meu passaporte atual e coloca um carimbo de anulado em cada uma das páginas vazias. 
 
STOMP. STOMP. STOMP. STOMP. Um visto. STOMP. STOMP. STOMP.
 
“Preciso viajar mais”, penso.
 
Enfim, ele solicita o cartão para pagamento.
 
O cartão não funciona.
 
Ele tenta outra vez, duas vezes, três vezes. Nada. Entrego outro cartão.
 
O cartão não funciona.
 
Por alguns instantes, sinto uma ponta de inveja dos caçadores-coletores, que não possuíam um sistema monetário, um cartão de crédito, um passaporte. E daí que vez ou outra morriam de frio ou eram devorados por roedores gigantes?
 
Transação aprovada!
 
O rapaz organizado pergunta à funcionária loira:
 
― Como será daqui a dez anos, na renovação do passaporte? O processo será o mesmo?
 
― Olha, passaporte você não renova, você emite um novo, mas não tenho a menor ideia como serão as coisas daqui a dez anos…
 
Saio com meu protocolo em mãos e com a mesma pergunta na cabeça: como será daqui a dez anos? O que o Homo sapiens terá destruído, desenvolvido ou desvendado até lá? Será que voltarei a este mesmo consulado em 2029? Será que meu passaporte terá mais carimbos? Quantas pessoas novas vou conhecer? Com quantas perderei contato? Só uma coisa é certa. Do alto dos meus 45 anos, vou olhar para minha foto atual e dizer:
 
― Nossa, eu ainda tinha cabelo!

Foto: Acervo pessoal

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Terceiro ato

O ano que acaba hoje foi para muitos um ano intenso. Se não tanto, ao menos foi difícil ficar indiferente a ele. Em meio a acontecimentos que impactaram o país e o mundo, pessoas nasceram, morreram; quase 8 bilhões viveram seus dramas, sonhos, frustrações e conquistas individuais. Além das minhas próprias, pude acompanhar as de alguns à minha volta e de outros a distância, afinal, a mesma tecnologia que nos isola dos que estão ao lado, também nos aproxima dos que estão longe. 

Uma das bilhões de pessoas que viveu seus dramas, sonhos e frustrações em 2018 foi Christin. Embora tenha nascido no Canadá, um país onde nunca pisei e para onde muitos  amigos resolveram ir este ano, conheci Christin em Los Angeles há quase uma década. Morávamos no mesmo prédio e estudávamos na mesma escola, ainda que em anos e disciplinas diferentes. Rapidamente nos tornamos amigos, compartilhamos jantares mexicanos e conversas constantes na jacuzzi, onde ela me explicou, como uma boa canadense, que não usava a vaga de deficientes pois não sentia que precisava. 
 
Christin sofria de um problema cardíaco que havia paralisado seu lado direito, o que não a impedia de produzir filmes, namorar garotas, dirigir – e viver sem medo. Terminado o mestrado, voltei para o Brasil e, salvo por poucas atividades nas redes sociais, soube pouco de Christin até ano passado, quando a mensagem Hi friend! How’s life? surgiu no meu celular. Atualizamos nossas vidas: a minha envolvia essencialmente o mesmo trabalho há anos e aulas de circo; a dela, um casamento, um filho, um divórcio. 
 
Nos meses seguintes, voltamos a acompanhar a vida um do outro com fotos, mensagens de texto e áudios. Ela me falou sobre o processo de divórcio, que envolvia discussões sobre a guarda do filho, sobre sua vida profissional, sobre uma nova namorada, com quem esteve empolgada durante meses até que terminaram. Falamos sobre como tentamos o tempo todo estar no controle das nossas vidas e sobre como isso tudo é uma grande ilusão; como não temos controle de nada e como, ao reconhecer isso, abraçamos o descontrole como parte da vida e simplesmente vivemos.
 
Recentemente Christin confessou que se sentia sozinha em Sacramento, uma cidade que não lhe oferecia muitas oportunidades de trabalho, mas onde queria ficar para estar próxima ao filho. Brinquei que aquele era o fim do segundo ato de sua vida: o momento em que tudo dá errado para, logo em seguida, uma grande virada trazer um final feliz. Ela gostou da ideia. O que será o terceiro ato da minha vida? – refletiu.
 
Não muito depois ela me escreveu, empolgada, dizendo que dirigiu três horas de Sacramento a San José, para um encontro que havia sido fenomenal. Estava radiante, mas tentando não criar expectativas.
 
Uma semana depois descobri pelo Facebook que Christin estava em San José quando caiu, bateu a cabeça e morreu.

Foto: https://www.ef.com.br/ils/destinations/united-states/los-angeles/

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Carros

A relação das pessoas com carros costuma dizer muito sobre elas. Meu sobrinho, por exemplo, é fanático por eles — sejam reais, sejam personagens do filme da Disney. Ele acha a Itália incrível porque é a terra dos Cinquecentos e sabe dizer a marca de praticamente todos os carros que passam na rua — desde os três anos de idade. “Pai, por que nas Olimpíadas aparece o símbolo da Audi em todo lugar?”

Já meu pai, que também acha a Itália incrível e é fiel à Fiat há mais de vinte anos, tem zero apreço por seu veículo — ou “depósito de jornal”, segundo minha mãe — e o encara com a mesma filosofia que encara um rolo de papel higiênico: use até acabar. “Essa fumaça preta é completamente normal, não tem nada a ver com aquele barulho, não se preocupe.” 
 
Eu sempre gostei de dirigir, mas nunca dei muita bola para carro, e o principal comentário de quem entra no meu costuma ser: “que limpo!” Existe, porém, uma relação muito pontual que costuma abalar minha tranquilidade automobilística e me deixar em constante estado de atenção: a com o carro alugado. 
 
O carro alugado em uma viagem pode resolver grandes problemas — e depois criar outros ainda maiores.

Você chega no estande da locadora, uma mulher sorridente encontra a sua reserva.

— O senhor não quer fazer um upgrade por apenas doze dólares por dia?
 
Você recusa a gentileza e ela, na maior cara de pau, continua: 
 
— Você está com sorte, estou vendo aqui que você ganhou um upgrade grátis! Aqui está seu Mustang.
 
— Senhora, eu reservei um Ford Ka.
 
— Ah, mas o Mustang é muito melhor, muito mais bonito, muito mais potente.
 
Você, que só queria um Ford Ka, sai resignado com seu carro esportivo que ficará estacionado na rua, à mercê de vândalos, pelos próximos dias e sua exorbitante autonomia de três quilômetros por litro. 
 
Outro grande momento do aluguel de carro é quando perguntam: “vai querer o seguro?”. 
 
Na última vez que precisei alugar um carro, há algumas semanas, já cheguei preparado, com uma reserva usando o cartão de crédito que já me oferecia um seguro como benefício. A atendente, sem tirar o sorriso do rosto, começa seu joguinho terrorista.
 
— Perfeito, senhor, mas o senhor sabe que o seguro do cartão só cobre a primeira ocorrência, né? Cada risco em partes diferentes do carro são ocorrências separadas. Mil euros cada uma.
 
Eu respondo um “sei, sim” como se o que ela está dizendo fizesse total sentido e aí, apesar de todo o planejamento, começo a me duvidar. De um lado, meu eu racional sabe que está tudo sob controle; de outro, um diabinho debocha: “Vai, bobo, recusa o seguro! É só uma viagem de três horas, à noite, numa estrada desconhecida e em obras, onde o celular não pega, com seus pais idosos no carro. É claro que você vai conseguir falar com a Visa no Brasil se precisar! O que pode dar errado?”
 
CORTA PARA:
 
EUA, 2014. Estou no país para o casamento de um amigo, em Santa Bárbara. Alugo um carro no aeroporto de Los Angeles — “O seguro aqui é obrigatório, senhor, não importa se o senhor tem AAA, vai querer ir contra a lei?!” Vou retirar meu terno na loja. Ao sair, um bilhete no retrovisor: uma multa. Descubro que não era permitido estacionar do lado ímpar às terças-feiras após o pôr-do-sol. Entro num posto de gasolina para manobrar, ouço um grande estalo. Percebo que dei ré em um cabo de aço preso do teto ao chão. Momentos de tensão. Desço do carro. Nenhum estrago aparente. Volto a respirar e decido comemorar minha vitória com alguns amigos num restaurante. Saio do restaurante, aceno para o Joaquin Phoenix — ou seria um morador de rua? — e entro no carro. Uma luz misteriosa está acesa no painel. “Que exclamação é essa, meu Deus?”. Abro o manual. Não é o óleo, não é o fluído de freio: é a pressão do pneu. Desço do carro e noto que o pneu traseiro está no chão. Penso em chamar Joaquin Phoenix para ajudar, mas ele já se foi, assim como meus amigos. Procuro o estepe: não tem. Descubro um kit reparador de pneus e recorro a toda minha destreza para usá-lo. Chego à locadora, levo uma bronca por ter reparado o pneu em vez de chamá-los e recebo um novo carro. Cem metros depois, a luz de “cheque seu motor” se acende. Volto à locadora. Recebo um carro pela terceira vez e, enfim, parto por 150 km em direção ao casamento. “Eu peguei o terno?!”
 
VOLTA PARA:
 
Itália, 2018. Estou só, no carro, a caminho do aeroporto de Catânia, após vinte dias intensos de viagem. O trajeto de três horas sob um sol de 40 graus está perto do fim quando uma luz familiar acende no painel: “pressão baixa no pneu”. Momentos de tensão. Paro no primeiro posto e desço do carro, com medo de olhar. Checo cada pneu — chuto, aperto, inspeciono: tudo parece normal. Procuro uma bomba de ar, não encontro; procuro um atendente, não encontro. “Faltam apenas 50 km, vai dar certo.” Ligo o som, me lanço de volta à estrada. Seja o que Deus quiser! Enfim, chego ao aeroporto, entrego a chave ao atendente, ele some no pátio, volta minutos depois. 
 
— Tudo certo, seu depósito caução está liberado, boa viagem!
 
Respiro aliviado e sigo para o check-in. “Seguro? Pra que seguro? Melhor comprar uma AirFryer.” 

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família, viagem

Apertem os cintos…

Minha avó sempre fazia as coisas do seu jeito, e sempre conseguia o que queria. Uma das coisas que queria era que minha mãe fosse ao menos uma vez na vida a Jerusalém – uma viagem que ela mesma havia feito. Por isso, não me foi de grande espanto descobrir que a viagem que faria com minha mãe à Terra Santa começaria precisamente no data do seu aniversário. “Morreu, mas ainda assim consegue as coisas!” – brincamos.

Uma viagem de 17 dias, com um grupo de 40 pessoas cuja idade média era 75 anos, prometia aventuras – que começaram já no aeroporto: quarenta velhinhas na fila preferencial, atropelando-se umas as outras com seus carrinhos carregados de malas com fitinhas de santos por todos os lados. Menos de 15 horas (e incontáveis detectores de metais) depois, já estávamos cara a cara com o Papa, e com nossos celulares na cara dele. “Onde é que aperta pra filmar?”
 
Visitamos as basílicas papais, os museus do Vaticano, as ruínas romanas e, é claro, as lojinhas. Ao fim de cada dia o desafio era lembrar o que estava em qual igreja. “Onde estava o prego da cruz, mesmo?” Não, lá era o túmulo do Pio XII!”.
 
Ao mesmo tempo em que tentavam conectar-se com o divino, alguns tentavam desvendar o mistério da insônia: teria sido o tiramisù às 11h da noite? O excesso de risoto? O jet lag não foi sequer considerado. Outros indignavam-se com a rudez dos italianos. “Todo mundo grita comigo,” frustrava-se uma. “Eles gritam com todo mundo, é o jeito deles, você não é especial,” explicava a outra.
 
Cinco dias e muitos gelatos depois, cruzamos o Mediterrâneo e chegamos ao Oriente Médio em grande estilo: emperrando a porta giratória do hotel em Tel Aviv. “Este é o banheiro mais limpo de toda Europa!” clamou uma. “Estamos na Ásia,” corrigiu outra. Para a alegria da gerência, após o café da manhã mais farto de toda viagem (“ah, não tem um pãozinho de queijo?”) caímos mais uma vez na estrada no que seria o início de um ritmo enlouquecido pela Terra Santa.  
 
A cada lugar sagrado, uma aventura, dividida com turistas de todo planeta com seus próprios guias e radinhos. “Não tô ouvindo nada, ele ‘tá falando alguma coisa?” “Tem que ligar!” “Mas tá ligado!” “Então acabou a bateria… Falei pra desligar à noite!” Cruzamos fronteiras rodoviárias que nos fizeram ter saudades da Estação da Sé e viajamos oito horas pelo deserto para visitar uma das novas maravilhas do mundo (ou para ficar esperando do lado de fora do parque, dependendo do cansaço…). Testemunhamos o milagre da comunicação entre mineiros e árabes. (“Ela quer uma sacolinha. Sa-co-li-nha.”) Boiamos e nos lambuzamos com a lama do Mar Morto, e de lambuja roubamos os tênis de alguém. “Ué, não é de nenhum de vocês? Ah, agora tá longe pra devolver, deixa pra lá…”. Caminhamos pelos templos onde Jesus pregava, pela gruta onde Jesus nasceu, pelo local onde Jesus teve a última ceia, pelo mar (que não é mar) onde Jesus andou sobre as águas, pelo rio onde Jesus foi batizado, pelas pedras por onde Jesus pode ou não ter caminhado. Invadimos as ruas de Jerusalém com nossos lencinhos cor de laranja que uma guia insistia em chamar de amarelo e com um guia que parecia estar num reality show onde vence quem chega primeiro; nos acotovelamos pelas estreitas escadarias da Via Sacra, apinhamo-nos por horas como adolescentes num show de rock para visitar o Santo Sepulcro – por quatro segundos.
 
E, sobretudo, tivemos grandes debates filosóficos.
 
As oliveiras do Monte das Oliveiras podem ser consideradas as mesmas da época de Jesus? Tudo bem ler a Bíblia pelado? Maria morreu virgem? Como pode aquela moça fazer uma leitura na missa assim, com os braços de fora? Os albinos são albinos porque só têm glóbulos brancos? Acho que Jesus era magro porque andava muito…
 
Duas semanas e seis hotéis depois, estávamos de volta ao aeroporto de Roma (por oito longas horas). Alguns sem voz, outros sem energia, outros sem saúde, outros sem dinheiro, mas todos cheios de reflexões. É impossível ficar indiferente a uma viagem desse tipo. Cada um à sua forma, tentávamos ser um pouco melhor; buscávamos uma conexão com Deus revivendo um pouco da Sua passagem pela Terra.
 
Particularmente, não encontrei Deus nos templos em ruínas, nas calçadas milenares ou nas relíquias sagradas. Ao contrário, acho que Deus não estava nas coisas: estava na paciência em explicar pela quarta vez como conectar o Wi-Fi no ônibus; nas gargalhadas no quarto de hotel ao relembrar os percalços do dia; no cuidado com os mais velhos ao descer escadas ou subir no ônibus atrás de um guia em disparada. E, principalmente, sentado na poltrona 34D do avião, rindo da aeromoça que tropeça na mala que um passageiro recusa-se a tirar do corredor.

Foto: Acervo pessoal

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Cotidiano, viagem

Conexões

Diversos estudos dizem que o ser humano busca, acima de tudo, pertencer e conectar-se. Faz sentido. Conectar-se com o outro é uma das jornadas mais fascinantes do nosso passeio por este planeta. Alguns entram na nossa vida com mais intensidade, alguns ficam por mais tempo, alguns compartilham os momentos mais íntimos, outros os mais alegres, outros os mais marcantes… É como se uma parte de todos que passaram pela minha vida tivesse ficado em mim e, da mesma forma, houvesse pedaços de mim espalhados pelo mundo, em busca de novas conexões.

E essas conexões ocorrem hoje das maneiras mais distintas, intensas e inusitadas. Nosso ritmo é tão alucinante que no tempo que leva para abrir o Instagram você já está íntimo de alguém. Basta ter seu nome e sobrenome e já posso saber onde você passou as férias, com quem jantou, quando nasceu, que música ouve. A vida íntima já não é, necessariamente, privada.
 
Aceleramos os relógios, e as relações parecem seguir no mesmo fast forward. Há não muitos anos, você se interessava por alguém, pedia o telefone, ligava uns dias depois, conversava, ligava outro dia, marcava algo. Semanas, meses se passavam até que o outro fizesse parte da sua vida. A intimidade era construída sobre os pilares do tempo. Quisemos tanto comprimir esse tempo que conseguimos: criamos as mais diversas plataformas para conectar pessoas com os mesmos interesses em apenas um clique. Viramos perfis em busca de matches. Você conhece alguém num aplicativo de relacionamento e por dois, três dias, outra pessoa invade sua vida com toda sua história, dúvidas, anseios, expectativas. Em 72 horas, ela sabe mais de você do que muitos à sua volta — e vice versa. Você compartilha seu cotidiano por fotos, áudios, textos. Vocês, enfim, se encontram, compartilham o que a conexão digital não permite — o jeito, o cheiro, a presença. Mas e depois? Como manter uma intimidade que atingiu o pico em três dias sem qualquer alicerce?
 
Por outro lado, será possível manter uma intimidade de anos atrás apenas por um fiapo digital? Em 2000, fiz um amigo que encontrava praticamente todos os dias durante cinco meses. Éramos intercambistas na Austrália e, desde que nos conhecemos na conexão em Auckland, nos tornamos amigos. Morávamos no mesmo bairro, estudávamos na mesma escola, íamos às mesmas festas: após dezesseis anos vivendo no mesmo lugar, com as mesmas relações, ele era meu primeiro grande novo amigo. Terminado o programa, voltamos ao Brasil: eu a São Paulo, ele a Porto Alegre.
 
Passaram-se oito anos até que nos encontrássemos novamente.
 
Pelos dois dias que ele esteve de passagem em São Paulo, atualizamos nossas vidas e saboreamos a amizade que poderia ter sido e que não foi. Ou será que foi? Será que cinco meses de intimidade são suficientes para segurar uma amizade de Facebook por uma vida inteira?
 
Por outro lado, será que existe uma intimidade intrínseca entre pessoas que mal se conhecem? Aos cinco anos de idade, recebi a visita de familiares da Itália, entre eles um primo de 13 anos. Não fossem as fotos dessa visita, não saberia sequer que já havíamos interagido alguma vez na vida. Quase trinta anos depois, nos reencontramos em Viena, onde ele vive. Sou recebido por esse completo estranho, que me leva para comer a que ele julga ser a melhor pizza da cidade. Passamos horas atualizando nossos trinta anos de vida por países diferentes em uma conversa que termina com a promessa de um novo reencontro. Em três dias, estávamos na sua cozinha, comendo spaghetti ao molho gorgonzola, conectados com familiares em todo o mundo pelo computador, antes de eu passar a noite no sofá. Completos estranhos e, ao mesmo tempo, primos íntimos de longa data.
 
Mas sempre que penso em conexão, me lembro de um episódio de muitos anos atrás que nada tem a ver a com o que normalmente associamos com intimidade.
 
Eu estava no aeroporto. Era provavelmente uma conexão a caminho de volta a Los Angeles. À minha frente, uma mulher do alto de seus quarenta anos chorava discretamente; ao seu lado, um homem da mesma idade, provavelmente seu marido, a consolava em silêncio, segurando sua mão. Ela respirou algumas vezes e parou de chorar. Alguns instantes se passaram, e agora era ele quem chorava, e ela quem o consolava. Não era um choro desesperado, mas um choro resignado, uma tristeza profunda para qual a única solução era deixar-se entristecer. Sem saber quem era aquele suposto casal ou o que havia acontecido para deixá-los assim, me conectei com sua dor e me entristeci também.
 
Da mesma forma aleatória que entraram na minha vida, os dois saíram algumas horas depois, rumo a sabe-se lá que cidade americana, deixando em mim um pedaço da sua intimidade: uma intimidade que não exigia palavras, apenas a presença e o silêncio; uma intimidade que expunha sua dor mais íntima a um completo estranho — eu.
 

Foto: Shutterstock

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As coisas mais simples

Quando eu era criança, um dos meus programas favoritos era ir ao McDonald’s: um McChicken, uma batata média, um guaraná e um nuggets de seis com molho caipira e eu estava no céu. Se fosse seguido de um cinema, então, o dia ganhava o status de melhor dia do ano.

Lembro o dia em que um vizinho comentou, todo animado, que almoçava toda terça-feira no McDonald’s porque ficava até tarde na escola. Outro vizinho, mais velho e mais cínico, devolveu: “Eu almoço quando quiser”.
 
Eu logo virei o outro vizinho. Comer no McDonald’s passou a ser a opção C e ir ao cinema virou parte da rotina. Vieram novas experiências, novas ambições e, sem perceber, foi ficando cada vez mais trabalhoso ter a mesma satisfação que um mero fast food me trazia aos doze anos de idade.
 
Ano passado, fui ao Burger King gravar um vídeo para um cliente. Precisávamos registrar pessoas comendo, e meu chefe disse: “Podem pedir o que quiserem”. Olhei para minha colega e percebi que ela tinha nos olhos o mesmo brilho que eu. Parados em frente ao balcão, era como se eu voltasse a ser aquela criança prestes a pedir um McChicken. Nós rimos. Ambos, felizmente, podiam tranquilamente bancar aquela refeição, mas o fato de podermos escolher hambúrgueres e batatas fritas ao bel-prazer nos trouxe uma alegria tão inocente, tão simples. E como é bom alegrar-se com as coisas simples…
 
Recentemente estive em uma cidade do interior de São Paulo, junto a algumas dezenas de jovens voluntários, para uma tarefa ousada: construir uma capela em três dias. Toda comunidade se movimentou para receber e alimentar as setenta bocas famintas. A cada dia, depois de horas de trabalho sob o sol, a refeição era sempre um dos momentos mais esperados. Não havia luxo, não havia frescura: havia o carinho de pessoas que passaram dias buscando doações de alimentos e horas preparando panelas e panelas de comida para alimentar nossos corpos suados.
 
Você entra na fila, pega o seu prato, equilibra um garfo ou uma colher — e com sorte uma faca — e observa os rostos sorridentes amontoando arroz, feijão, farofa, macarrão, carne, batata, cenoura, tomate e salada a sua frente. Com a outra mão, você pega um copo de plástico com suco e um guardanapo e procura uma sombra: pode ser uma cadeira, um banco, um pedaço de madeira ou um espaço no muro onde você simplesmente possa apoiar as costas. Você tenta explicar para o cachorro vira-lata que aquela comida é só para você e usa todo o equilíbrio adquirido no alongamento da manhã para se sentar sem derrubar o suco, a salada, o garfo e o guardanapo. O prato de vidro está quente com os dois quilos de comida, então você usa o capacete no colo como apoio e se prepara para dar a primeira garfada sem derrubar um grão de arroz.
 
Essa será a melhor refeição da sua vida.
 
Você dá risada ao se lembrar da vez em que reclamou da falta de um jogo americano no restaurante; você termina de comer, alguém gentilmente aparece para retirar seu prato, repor seu suco ou oferecer uma gelatina. Você tem meia hora até voltar para a obra e não pensa duas vezes: estica as pernas ocupando toda sombra do muro de cimento, tira os sapatos, apoia a cabeça no capacete e fecha os olhos. Você está no céu. Minutos depois você acorda mais descansado do que poderia imaginar, pronto para voltar para o sol e carregar mais vigas de madeira.
 
O ritmo da minha vida — e sei que o da maioria das pessoas — é sempre muito agitado. Há sempre algum lugar para ir, algo importante a fazer, algo novo a conquistar. E não vou mentir: eu gosto disso. Gosto de ter metas, de ter ambições, de tentar ser melhor, estar melhor.
 
Mas é um privilégio, nesse ritmo louco, ter a chance de parar por um instante e lembrar que o chão de asfalto pode ser tão macio quanto um travesseiro de plumas.
 

Foto: Acervo pessoal

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