Cotidiano, família

Confia em mim

Há cinco anos, quando comecei a fazer aulas de circo, não conhecia a variedade de aparelhos, e modalidades, e atividades, e estilos que fazem parte desse vasto universo. No decorrer desse período, já me pendurei em tecidos, liras, cordas; já dei mortais em camas elásticas, colchões, fossos; e já me lancei nas mãos de outros seres humanos a seis metros do chão em um trapézio de voos. Recentemente, nesta última modalidade, comecei a treinar um truque que envolve dar um balanço completo no trapézio – um swing –, virar um moral e meio no ar e entregar as pernas ao trapezista de ponta cabeça no outro trapézio – o catcher. Tudo é feito com muita segurança: há, é claro, uma rede logo abaixo e uma corda presa à minha cintura, controlada por um instrutor – o lonjeiro. Mas isso não muda o fato de que, durante o treino – feito sem o catcher –, ao terminar o movimento, estou mergulhando de cabeça em direção a rede, à mercê das habilidades do lonjeiro, em quem eu invariavelmente preciso confiar.

Todas as atividades circenses, aliás, envolvem confiar em alguém: seja no seu parceiro de truque que te segura com os pés, seja na professora que diz “pode soltar, a trava está certa” na hora de uma queda de três metros no tecido. Mas essas são pessoas em quem escolhemos confiar.  Na vida fora do circo, porém, nem sempre é exatamente assim.

Há algumas semanas, vendi um carro que acompanhou minhas aventuras desde 2013. Eu sei o quanto cuidei dele e o quão sortuda seria a pessoa a tirá-lo das minhas mãos. Já Felipe, o comprador, não. É verdade que ele pode inspecionar o motor, checar os antecedentes na internet, fazer um test drive, mas em última instância ele precisa confiar que o carro não vai desmontar em suas mãos assim que ele me transferir o dinheiro. Da mesma forma, eu não conheço meu xará: posso investigá-lo na internet, checar se seus dados são reais, mas em última instância preciso confiar que o dinheiro não vai desaparecer em uma nova modalidade de golpe assim que ele puser as mãos na chave. Saindo do cartório – ele com o documento, eu com o dinheiro –, estávamos quase surpresos com o fato de que, olha só, não era um golpe, deu tudo certo!

Mas naquele mesmo dia ainda seria desafiado a confiar em mais alguns desconhecidos.

Enquanto assinava a transferência do veículo em frente ao tabelião, minha mãe assinava a internação no hospital para uma cirurgia de emergência.

— Mas essa roupa tá horrível, eu nem troquei! — indignava-se ela.

— Da próxima vez a senhora precisa se planejar melhor pra quebrar a perna — brincava o médico.

Parte de seu incômodo – juntamente com a dor de um fêmur partido ao meio – era não poder se preparar com antecedência para a cirurgia, escolher um médico conhecido, uma data menos pandêmica.

— Quando é um dia bom pra quebrar a perna, mãe?

O fato é que, de um dia para o outro, ela seria operada por alguém sobre quem nunca ouvira falar – e em quem teria de confiar.

Dr. Thiago entra no quarto radiante e afirma que a cirurgia será naquela mesma noite.

— Você parece meu primo! — diz minha mãe.

— Eu sou mais bonito — diz o Dr. Desconhecido.

Uma mulher de crocs que eu jurava ter dezenove anos se apresenta como anestesista.

— Vai ser uma picadinha aqui, outra ali, vira de lado, mais uma, e a senhora não vai sentir nada. Agora é só assinar estes papéis, e mais estes, e depois estes aqui também, por favor.

Dr. Thiago volta e anuncia:

— O plano de saúde aprovou a cirurgia! Vou operar com o Dr. Lucas.

E se fosse o Dr. Rogério? Ou o Dr. Epaminondas? Ou a Dra. Cleide? Que diferença faz, se a gente não conhece ninguém?

Às nove da noite, a enfermeira a leva para o centro cirúrgico, onde alguém vai desligá-la por algumas horas, fazer três cortes na sua perna direita, inserir uma haste, dois parafusos, costurá-la de volta e esperar que em alguns meses sua perna se movimente como antes. A nós, só resta confiar.

Todos nós temos uma rede de apoio – amigos, família, parceiros: pessoas em quem confiamos e com quem podemos contar quando a coisa aperta. Mas a verdade é que isso não basta. Não vivemos numa bolha redonda e cristalina: vivemos numa grande bagunça em que, cientes ou não, precisamos confiar no outro: que ele vai parar no sinal vermelho; que ele não vai cuspir na comida; que ele não bebeu antes da sua corrida; que ele fez a manutenção do avião; que ele vai consertar a minha mãe.

É verdade que não estamos todos no mesmo barco, mas certamente estamos todos no mesmo oceano. E sem um estranho pra te lançar uma boia de vez em quando, a gente afunda.

Foto: Rogério Takahashi

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Cotidiano, família, viagem

Devassos

Tendo passado a grande maioria dos meus trinta e seis anos solteiro, estar em viagens ou eventos sociais acompanhado de amigos e familiares é, para mim, completamente natural. A sociedade, porém, não parece pensar da mesma forma. Isso ficou evidente em uma viagem de três dias que fiz para um hotel no interior de São Paulo com meu amigo Jorge.

Estávamos almoçando, Jorge e eu, quando ele levantou-se para buscar mais comida. Um garoto de uns 10 anos de idade se aproximou e me encarou, curioso. Ele vestia uma camisa do São Paulo e uma chuteira colorida, e tinha um olhar que transmitia, ao mesmo tempo, inocência e sadismo. Descobriria no futuro, sem grande surpresa, que seu nome era Enzo.

— Você é o tio do futebol? — ele perguntou.

Tentei me lembrar da última vez em que eu havia tocado numa bola de futebol, possivelmente em uma brincadeira entre amigos, em 2006. A penúltima certamente havia sido em 1993.

— Não — respondi.

— O que você faz?

— Aqui ou na vida?

Ele refletiu por um instante.

— Aqui.

— Estou de férias, descansando.

— Você namora?

Quem é você? Minha mãe? Por que esse interesse na minha vida afetiva?

— Não.

— Cadê o moço que estava sentado aqui?

— Foi pegar mais comida.

Não é a primeira vez que alguém suspeita que Jorge e eu somos um casal. Não por qualquer característica em particular – apesar de Jorge já ter sido questionado sobre o tamanho de suas golas V, o comprimento de suas bermudas, a estampa de sua sunga –, mas simplesmente porque se dois homens estão juntos, e não estão bebendo, jogando futebol ou arrotando, eles só podem, é claro, estar chupando o pinto um do outro. Jorge não é gay – algo que ele faz questão de deixar claro para as mulheres solteiras ao redor. Aliás, se medíssemos a heterossexualidade de alguém pela quantidade de parceiros do sexo oposto, Jorge seria possivelmente a pessoa menos gay do meu convívio. Dito isso, não é como se ele se importasse com a questão – um dos muitos motivos pelos quais somos tão amigos.

Ser confundido com um casal não é uma novidade para mim. Certa vez, em um bar descolado, um garçom/modelo decidiu que Larissa e eu éramos o par perfeito, a ponto de perguntar para mim qual drink ela queria e nos servir água no mesmo copo. Isso acontece também de maneira ainda mais costumeira – e perturbadora – quando estou com minhas irmãs. Durante anos, fiz aulas de espanhol com uma delas, cinco anos mais velha. Um dia, renovando a matrícula, a secretária tomou coragem e se manifestou:

— Desculpa, posso fazer uma pergunta? Faz muito tempo que eu quero perguntar, mas não tinha coragem.

— Pode falar — respondi, com alguma tensão.

— Vocês são o quê?

Levamos alguns instantes para entender o que ela queria dizer.

— Vocês são casados? — ela esclareceu.

“Eu tenho dezesseis anos! E você sabe disso, porque na ficha que está na sua frente tem minha data de nascimento!”

— Não, nós somos irmãos.

— Nooooossa, eu nunca ia imaginar! Eu via o mesmo sobrenome, mas bem que achava vocês muito novinhos pra serem casados…

Com minha outra irmã – esta, treze anos mais velha – a situação é parecida. Basta entrarmos em qualquer quarto de hotel para encontrarmos uma cama de casal romanticamente decorada. “Olá, é do spa? / Gostaria de marcar duas sessões para hoje à tarde. / Não, não estamos em lua de mel. Quer dizer, espera. Tem desconto?” Agora um homem e uma mulher não podem nem fazer uma massagem esfoliante juntos sem parecerem um casal? Também acontece de estarmos com minhas sobrinhas, de idades treze a dezessete, o que automaticamente nos configura como um casal com três filhas – ou, em dias menos generosos com minha irmã, uma mãe com quatro filhos.

Já quando visito minhas sobrinhas, sua mãe anuncia ao porteiro:

— Pode deixar subir, é meu irmão – “e não meu amante”, é o que fica implícito.


No segundo dia da viagem, Enzo nos encontrou na piscina.

— Você é o tio do futebol? — perguntou, desta vez para Jorge.

— Não.

— O que você faz?

— Estou de férias, descansando.

Eu já sabia o que vinha depois.

— Você namora?

— Não.

Enfim, ele tomou coragem, apontou para nós dois e perguntou o que realmente queria saber:

— Vocês são o quê?

— Amigos — Jorge respondeu.

Não sei se ele resolveu mudar de assunto ou validar a resposta, mas a pergunta seguinte foi direcionada a mim.

— Hoje você não está usando o arquinho?

Era uma época conturbada, em que muitos homens – e mulheres – abandonaram qualquer senso estético, de forma que mullets e raízes brancas repentinamente voltaram à moda. Sendo assim, a forma mais prática de manter meus cabelos apresentáveis à sociedade era usando uma tiara, o que Enzo, suspeitava eu, considerava um artigo feminino.

— É que na piscina não precisa — respondi.

— E esse livro que você tá lendo? É Harry Potter?

Ele apontou para o livro com uma coruja na capa, apoiado sobre uma toalha na borda da piscina. “Vamos Explorar Diabetes com Corujas – ensaios, etc.” era o título, em tradução livre. Escrito por David Sedaris – um autor alcoólatra, homossexual e genial – o livro reúne histórias em primeira pessoa sobre o roubo de tartarugas-bebês, desavenças com estranhos em aeroportos e aventuras sexuais em um trem, entre diversos outros episódios.

— Não, definitivamente não é Harry Potter.

Horas depois, estávamos de volta ao restaurante, Jorge, eu e agora Renata, uma garota que viajava sozinha e a quem Jorge havia deixado claro que não era gay. “Viajando sozinha nesse hotel que só tem velho e família? Certeza que é puta!”, refletiram os pais de Enzo em algum momento. Enzo voltou, dessa vez acompanhado de dois amigos mais novos. “Vem comigo, quero mostrar uma coisa incrível pra vocês!” – ele certamente dissera minutos antes. Os três nos encaravam como quem acompanha pinguins sendo alimentados no zoológico. A equipe de animação do hotel nos olhou da mesa ao lado. Talvez estivessem com ciúmes. “O que eles têm que eu não tenho?”

— Viu, Enzo? Eu chamei ele pra jantar! — disse Renata apontando para Jorge, sugerindo que ela também havia sido vítima do interrogatório afetivo do garoto.

Depois de nos encararem por mais alguns desconfortáveis minutos, o pequeno trio partiu rumo a alguma atividade seguramente menos interessante.

— Hoje cedo ele me perguntou como vocês dormiam — confessou Renata. — “Porque nos quartos só tem uma cama de casal!”

— E você disse que no nosso quarto a cama é de solteiro e que dormimos nus, de conchinha?

Ainda veríamos Enzo mais uma vez naquela viagem. Jorge, Renata e eu conversávamos na recepção quando ele passou com os pais, que levavam as malas para fora.

— Já vai embora? — perguntou Renata.

— Já… — disse ele, decepcionado com o fim das férias.

Seus pais, por outro lado, carregavam o carro aliviados por levarem seu rebento para longe daquele antro, onde atos impronunciáveis eram praticados ao cair da noite na intimidade do quarto 238.

Foto: Thomas Couture“Les Romains de la décadence” (Musée d’Orsay, 1847. Óleo sobre tela, 472 x 772 cm)

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À mão

Eu nunca gostei das minhas mãos. Não há nada efetivamente errado com elas, mas elas simplesmente nunca me agradaram. Embora sejam grandes, meus dedos são finos; em uma análise mais crítica, são um pouco tortos, sobretudo o dedo médio da mão esquerda. Minhas unhas parecem acabar antes do que deveriam, como se as pontas dos meus dedos quisessem engolir as unhas. “Que fofos!”, já me disseram, mas eu discordo.

A parte de cima das mãos tem veias bem aparentes (a alegria das enfermeiras que precisaram colocar um acesso ali), enquanto as palmas já exibem pequenos calos, consequência de alguns anos de acrobacias em liras e trapézios — características que, confesso, não me incomodam. 

Há algum tempo, devido às mesmas atividades circenses, minhas mãos começaram a doer: uma dor nas juntas no meio dos dedos que durou meses de descanso e acupuntura até que desaparecesse. Não que dores nas mãos fossem uma novidade, já que aparecem toda noite, depois de alguns minutos de escrita à mão (e, desde que inventei de aprender piano, depois de alguns minutos tocando algumas míseras teclas). 

Quando estou nervoso, encaixo a mão esquerda sobre a direita, entrelaçando os dedões, e aperto com força, numa tentativa frustrada de conter a irritação, sempre percebida pelos colegas de trabalho. Quando estou empolgado, abro a mão como se estivesse alongando os dedos, o que também não passa despercebido por quem está por perto.

Na família, o consenso sempre foi de que quem tem mãos bonitas é meu pai. São grandes, com dedos alongados e proporcionais, e unhas que crescem até o fim e só pedem para ser aparadas quando não há mais dedo sobre o qual crescer. Também é um consenso que ele e sua irmã, que vivia na Itália, têm as mãos surpreendentemente idênticas, de maneira que seria impossível distingui-las em uma foto. 

Há um movimento muito específico que meu pai faz com as mãos quando está refletindo: enquanto estende uma delas à frente, como se observasse as unhas, a outra a apalpa como se a examinasse, com o dedão por cima e os outros dedos por baixo. Não seria algo particularmente notável, não fosse o fato de que eu, quando estou refletindo, me pego fazendo exatamente o mesmo movimento.

De fato, gostando ou não, minhas mãos me representam: simbolizam a minha profissão, exibem as marcas do meu esporte, carregam literalmente o meu peso; às vezes doem, às vezes decepcionam, mas no fim das contas sempre dão conta do recado. E acusam a minha origem.


Há alguns anos testemunhei o reencontro de meu pai com sua irmã, com quem conviveu muito pouco de suas nove décadas de vida. Quando ela se pôs a refletir, estendeu uma das mãos à frente, como se observasse as unhas, e apalpou-a com a outra como se a examinasse. 

Exatamente como meu pai. Exatamente como eu. 

Foto: Acervo pessoal

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família, viagem

Apertem os cintos…

Minha avó sempre fazia as coisas do seu jeito, e sempre conseguia o que queria. Uma das coisas que queria era que minha mãe fosse ao menos uma vez na vida a Jerusalém – uma viagem que ela mesma havia feito. Por isso, não me foi de grande espanto descobrir que a viagem que faria com minha mãe à Terra Santa começaria precisamente no data do seu aniversário. “Morreu, mas ainda assim consegue as coisas!” – brincamos.

Uma viagem de 17 dias, com um grupo de 40 pessoas cuja idade média era 75 anos, prometia aventuras – que começaram já no aeroporto: quarenta velhinhas na fila preferencial, atropelando-se umas as outras com seus carrinhos carregados de malas com fitinhas de santos por todos os lados. Menos de 15 horas (e incontáveis detectores de metais) depois, já estávamos cara a cara com o Papa, e com nossos celulares na cara dele. “Onde é que aperta pra filmar?”
 
Visitamos as basílicas papais, os museus do Vaticano, as ruínas romanas e, é claro, as lojinhas. Ao fim de cada dia o desafio era lembrar o que estava em qual igreja. “Onde estava o prego da cruz, mesmo?” Não, lá era o túmulo do Pio XII!”.
 
Ao mesmo tempo em que tentavam conectar-se com o divino, alguns tentavam desvendar o mistério da insônia: teria sido o tiramisù às 11h da noite? O excesso de risoto? O jet lag não foi sequer considerado. Outros indignavam-se com a rudez dos italianos. “Todo mundo grita comigo,” frustrava-se uma. “Eles gritam com todo mundo, é o jeito deles, você não é especial,” explicava a outra.
 
Cinco dias e muitos gelatos depois, cruzamos o Mediterrâneo e chegamos ao Oriente Médio em grande estilo: emperrando a porta giratória do hotel em Tel Aviv. “Este é o banheiro mais limpo de toda Europa!” clamou uma. “Estamos na Ásia,” corrigiu outra. Para a alegria da gerência, após o café da manhã mais farto de toda viagem (“ah, não tem um pãozinho de queijo?”) caímos mais uma vez na estrada no que seria o início de um ritmo enlouquecido pela Terra Santa.  
 
A cada lugar sagrado, uma aventura, dividida com turistas de todo planeta com seus próprios guias e radinhos. “Não tô ouvindo nada, ele ‘tá falando alguma coisa?” “Tem que ligar!” “Mas tá ligado!” “Então acabou a bateria… Falei pra desligar à noite!” Cruzamos fronteiras rodoviárias que nos fizeram ter saudades da Estação da Sé e viajamos oito horas pelo deserto para visitar uma das novas maravilhas do mundo (ou para ficar esperando do lado de fora do parque, dependendo do cansaço…). Testemunhamos o milagre da comunicação entre mineiros e árabes. (“Ela quer uma sacolinha. Sa-co-li-nha.”) Boiamos e nos lambuzamos com a lama do Mar Morto, e de lambuja roubamos os tênis de alguém. “Ué, não é de nenhum de vocês? Ah, agora tá longe pra devolver, deixa pra lá…”. Caminhamos pelos templos onde Jesus pregava, pela gruta onde Jesus nasceu, pelo local onde Jesus teve a última ceia, pelo mar (que não é mar) onde Jesus andou sobre as águas, pelo rio onde Jesus foi batizado, pelas pedras por onde Jesus pode ou não ter caminhado. Invadimos as ruas de Jerusalém com nossos lencinhos cor de laranja que uma guia insistia em chamar de amarelo e com um guia que parecia estar num reality show onde vence quem chega primeiro; nos acotovelamos pelas estreitas escadarias da Via Sacra, apinhamo-nos por horas como adolescentes num show de rock para visitar o Santo Sepulcro – por quatro segundos.
 
E, sobretudo, tivemos grandes debates filosóficos.
 
As oliveiras do Monte das Oliveiras podem ser consideradas as mesmas da época de Jesus? Tudo bem ler a Bíblia pelado? Maria morreu virgem? Como pode aquela moça fazer uma leitura na missa assim, com os braços de fora? Os albinos são albinos porque só têm glóbulos brancos? Acho que Jesus era magro porque andava muito…
 
Duas semanas e seis hotéis depois, estávamos de volta ao aeroporto de Roma (por oito longas horas). Alguns sem voz, outros sem energia, outros sem saúde, outros sem dinheiro, mas todos cheios de reflexões. É impossível ficar indiferente a uma viagem desse tipo. Cada um à sua forma, tentávamos ser um pouco melhor; buscávamos uma conexão com Deus revivendo um pouco da Sua passagem pela Terra.
 
Particularmente, não encontrei Deus nos templos em ruínas, nas calçadas milenares ou nas relíquias sagradas. Ao contrário, acho que Deus não estava nas coisas: estava na paciência em explicar pela quarta vez como conectar o Wi-Fi no ônibus; nas gargalhadas no quarto de hotel ao relembrar os percalços do dia; no cuidado com os mais velhos ao descer escadas ou subir no ônibus atrás de um guia em disparada. E, principalmente, sentado na poltrona 34D do avião, rindo da aeromoça que tropeça na mala que um passageiro recusa-se a tirar do corredor.

Foto: Acervo pessoal

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Boyhood

Quando eu era pequeno, um dos grandes ritos de passagem era poder ir sozinho à lojinha de presentes e guloseimas que ficava literalmente a uma quadra do prédio onde eu morava. A infância era dividida entre poder/não poder ir sozinho até a Rosinha: uma distância que podia ser integralmente vigiada por pais atentos da janela da cozinha.

Fui uma criança de prédio. Brincava de pega-pega, alerta e esconde-esconde, que incluía as variações vale/não vale passar pela janelinha. Quebrei vidro, esfolei o joelho, brinquei na quadra até as luzes apagarem e alguém gritar do terraço que era hora de subir.

Outro dia tentei lembrar quando foi a última vez que brinquei de esconde-esconde. Não consegui. Em algum momento cresci, deixei de passar pela janelinha e, sem perceber, o “mãe, posso descer?” virou “mãe, tô saindo.”

A Rosinha fechou. Veio a fase do “não volta tarde”, do “não bebe muito”, do “avisa quando chegar”.

Tirei carta. Dei ré com meu Uno Mille numa Mitsubishi Station Wagon na frente de casa. “Pai, bati o carro.”

Fui morar fora. Fui morar sozinho.

E então os papéis se inverteram.

Isso ficou mais claro do que nunca quando decidi presentear minha mãe e minha tia (que somam 140 anos de idade) com ingressos para o show de um cantor italiano. Como um pai caridoso que vai atrás da meia-entrada para o filho adolescente, me vi em meio a uma odisseia que envolveu duas idas ao local do evento, um sistema fora do ar e clientes de meia-idade revoltados com o descaso.

— Mas que inferno isso! Vou processar todo mundo! — esbravejava um.

— Escuta, mas a gente não saiu de casa pra se divertir? — rebatia a esposa, tentando salvar o programa, fadado a falhar antes mesmo de começar.

No mesmo guichê, um pai comprava um ingresso de um show de rock para a filha.

— Ih, só tem lugar lá em cima. Paciência, vai esse mesmo. E ai dela se reclamar! Ainda vou ter que vir buscá-la depois do show — confidenciou ele ao senhor que ia processar todo mundo.

Horas depois, saio com um par de ingressos na mão e uma série de preocupações na cabeça. Se eu for levar, como vão voltar? Posso ficar no shopping esperando… Ah, elas voltam de táxi. Será que é perigoso? Elas não têm aplicativo… Ah, mas na porta sempre tem táxi. E se eu voltar pra buscar depois? Qualquer coisa tem minha prima. O que é Uber? Põe o cinto. Carrega o celular, hein? Liga quando chegar.

Sobreviveram. Radiantes.

Curioso pensar como o jogo vira, como o sol muda de lado. Não importa se você foi um grande líder, um grande executivo ou um grande boçal: se você tiver sorte — e esta é a grande ironia — se você tiver sorte, vai viver o suficiente para tomar um banho de humildade e perceber que você invariavelmente precisa do outro.

Hoje você dá conselhos, amanhã recebe. Hoje você cuida, amanhã é cuidado. Hoje você pode estar no alto da roda gigante, mas amanhã — se tiver sorte — ainda vai estar nela para apreciar a beleza da descida.


Outro dia cheguei à casa dos meus pais e vi uma carta da prefeitura sobre a mesa.

— Seu pai levou outra multa, mas não dá bronca nele — disse minha mãe, enquanto tricotava.

Ele desceu as escadas, veio até mim, cauteloso.

— Viu, eu tomei uma multa porque eu tava sem cinto, mas já aprendi a lição. Não faço mais, tá bom?

E foi para a cozinha.

Foto: The King Photography

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