Cotidiano

Terça-feira

É um daqueles dias em que você decide que tudo bem almoçar um Mc Donald’s em plena terça-feira, com direito a batata grande e nuggets de seis com molho caipira, como você fazia na infância. Talvez até um sorvete. Não tem nada de errado com a sua manhã, mas também nada parece muito certo. Você foi resolver uma dessas burocracias da vida adulta e caminha por ruas que não costuma caminhar, onde pessoas parecem viver vidas reais — de alguma forma, mais reais que a sua. Pelo menos é uma quebra na sua rotina, e o dia está bonito, então você decide aproveitá-lo, nem que seja comendo um Mc Donald’s naquela loja que era o refúgio do “cheeseburger a um real toda quarta” na época do cursinho. Você lembra da loja maior do que era, como de costume acontece quando voltamos aos lugares do passado. Pensa nos amigos que dividiram aquelas mesas com você: cada um hoje em um lugar da vida e do mundo. Os sanduíches não são mais tão simples como eram naquela época e você decide testar uma das novidades do cardápio, acompanhado do nuggets de seis com molho caipira em que você está pensando desde que pegou o carro e decidiu que era um daqueles dias que tudo bem bem almoçar no Mc Donald’s em plena terça-feira. Enquanto aguarda seu pedido, você observa o entra e sai da loja, a gerente que destrava um caixa, a moça da limpeza que tira o lixo com um sorriso no rosto e um headset no ouvido. Uma mãe liga para o filho e exige que ele coma alguma coisa antes de ir fazer a prova e que ele mande uma mensagem para o pai. Você ainda não se decidiu sobre o sorvete e decide decidir depois. Você apanha sua bandeja, seus guardanapos e senta-se no balcão. Mal começa a molhar a batata no ketchup quando um garotinho se aproxima. Você está num banco alto e por isso o garotinho de cabelos descoloridos parece ainda menor e mais indefeso quando pede para você comprar um lanche. Por algum motivo você já sabia que isso iria acontecer e não pensa duas vezes antes de dizer que sim. Você pergunta qual sanduíche ele quer e ele aponta para o cartaz da promoção 2 por 1. Você desce do balcão, vai com ele até o caixa e acrescenta uma batata e uma coca-cola. A atendente sorri e pergunta o seu nome para anotar no pedido. Você sorri e pergunta o nome dele.

— Irã.
 
Irã como o enorme país do Oriente Médio, como o lar das civilizações mais antigas do mundo, como a terra cheia de riquezas sob a superfície e de conflitos sobre ela. Irã.

Ele aguarda seu lanche enquanto você volta para o balcão e come um nugget. A atendente sorridente entrega a bandeja e ele senta-se na mesa à sua frente, te agradece com um joinha e abre o sanduíche. Você pensa em ir sentar-se com ele, mas pensa que talvez seja invasivo; pensa em chamá-lo para sentar-se com você, mas de repente o oceano de distância entre vocês parece intransponível. Você pensa que não saberia o que dizer ou o que fazer, pensa que alguns minutos à mesma mesa não seriam suficientes para conectar o seu continente e o dele, e decide continuar ali, comendo seu sanduíche enquanto ele come o dele. Você pensa que pode pelo menos comprar um sorvete para ele quando for comprar o seu — ele certamente não espera por isso e ficará feliz. Mas antes de você terminar suas batatas ele já terminou as dele. Ele se levanta, com o sanduíche e a coca-cola ainda em mãos, te agradece novamente e sai pela porta que entrou, desaparecendo na avenida. Você termina o sanduíche, o nugget, a batata; joga as embalagens no lixo que a moça sorridente acabou de limpar e parte. Você passa pelo caixa em direção à saída e já não quer mais tomar um sorvete. Não tem nada de errado com a sua tarde, mas também nada parece muito certo.

Foto: https://www.meioemensagem.com.br/home/ultimas-noticias/2019/01/16/mcdonalds-perde-uso-exclusivo-da-marca-big-mac-na-europa.html

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família, viagem

Apertem os cintos…

Minha avó sempre fazia as coisas do seu jeito, e sempre conseguia o que queria. Uma das coisas que queria era que minha mãe fosse ao menos uma vez na vida a Jerusalém – uma viagem que ela mesma havia feito. Por isso, não me foi de grande espanto descobrir que a viagem que faria com minha mãe à Terra Santa começaria precisamente no data do seu aniversário. “Morreu, mas ainda assim consegue as coisas!” – brincamos.

Uma viagem de 17 dias, com um grupo de 40 pessoas cuja idade média era 75 anos, prometia aventuras – que começaram já no aeroporto: quarenta velhinhas na fila preferencial, atropelando-se umas as outras com seus carrinhos carregados de malas com fitinhas de santos por todos os lados. Menos de 15 horas (e incontáveis detectores de metais) depois, já estávamos cara a cara com o Papa, e com nossos celulares na cara dele. “Onde é que aperta pra filmar?”
 
Visitamos as basílicas papais, os museus do Vaticano, as ruínas romanas e, é claro, as lojinhas. Ao fim de cada dia o desafio era lembrar o que estava em qual igreja. “Onde estava o prego da cruz, mesmo?” Não, lá era o túmulo do Pio XII!”.
 
Ao mesmo tempo em que tentavam conectar-se com o divino, alguns tentavam desvendar o mistério da insônia: teria sido o tiramisù às 11h da noite? O excesso de risoto? O jet lag não foi sequer considerado. Outros indignavam-se com a rudez dos italianos. “Todo mundo grita comigo,” frustrava-se uma. “Eles gritam com todo mundo, é o jeito deles, você não é especial,” explicava a outra.
 
Cinco dias e muitos gelatos depois, cruzamos o Mediterrâneo e chegamos ao Oriente Médio em grande estilo: emperrando a porta giratória do hotel em Tel Aviv. “Este é o banheiro mais limpo de toda Europa!” clamou uma. “Estamos na Ásia,” corrigiu outra. Para a alegria da gerência, após o café da manhã mais farto de toda viagem (“ah, não tem um pãozinho de queijo?”) caímos mais uma vez na estrada no que seria o início de um ritmo enlouquecido pela Terra Santa.  
 
A cada lugar sagrado, uma aventura, dividida com turistas de todo planeta com seus próprios guias e radinhos. “Não tô ouvindo nada, ele ‘tá falando alguma coisa?” “Tem que ligar!” “Mas tá ligado!” “Então acabou a bateria… Falei pra desligar à noite!” Cruzamos fronteiras rodoviárias que nos fizeram ter saudades da Estação da Sé e viajamos oito horas pelo deserto para visitar uma das novas maravilhas do mundo (ou para ficar esperando do lado de fora do parque, dependendo do cansaço…). Testemunhamos o milagre da comunicação entre mineiros e árabes. (“Ela quer uma sacolinha. Sa-co-li-nha.”) Boiamos e nos lambuzamos com a lama do Mar Morto, e de lambuja roubamos os tênis de alguém. “Ué, não é de nenhum de vocês? Ah, agora tá longe pra devolver, deixa pra lá…”. Caminhamos pelos templos onde Jesus pregava, pela gruta onde Jesus nasceu, pelo local onde Jesus teve a última ceia, pelo mar (que não é mar) onde Jesus andou sobre as águas, pelo rio onde Jesus foi batizado, pelas pedras por onde Jesus pode ou não ter caminhado. Invadimos as ruas de Jerusalém com nossos lencinhos cor de laranja que uma guia insistia em chamar de amarelo e com um guia que parecia estar num reality show onde vence quem chega primeiro; nos acotovelamos pelas estreitas escadarias da Via Sacra, apinhamo-nos por horas como adolescentes num show de rock para visitar o Santo Sepulcro – por quatro segundos.
 
E, sobretudo, tivemos grandes debates filosóficos.
 
As oliveiras do Monte das Oliveiras podem ser consideradas as mesmas da época de Jesus? Tudo bem ler a Bíblia pelado? Maria morreu virgem? Como pode aquela moça fazer uma leitura na missa assim, com os braços de fora? Os albinos são albinos porque só têm glóbulos brancos? Acho que Jesus era magro porque andava muito…
 
Duas semanas e seis hotéis depois, estávamos de volta ao aeroporto de Roma (por oito longas horas). Alguns sem voz, outros sem energia, outros sem saúde, outros sem dinheiro, mas todos cheios de reflexões. É impossível ficar indiferente a uma viagem desse tipo. Cada um à sua forma, tentávamos ser um pouco melhor; buscávamos uma conexão com Deus revivendo um pouco da Sua passagem pela Terra.
 
Particularmente, não encontrei Deus nos templos em ruínas, nas calçadas milenares ou nas relíquias sagradas. Ao contrário, acho que Deus não estava nas coisas: estava na paciência em explicar pela quarta vez como conectar o Wi-Fi no ônibus; nas gargalhadas no quarto de hotel ao relembrar os percalços do dia; no cuidado com os mais velhos ao descer escadas ou subir no ônibus atrás de um guia em disparada. E, principalmente, sentado na poltrona 34D do avião, rindo da aeromoça que tropeça na mala que um passageiro recusa-se a tirar do corredor.

Foto: Acervo pessoal

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Cotidiano, viagem

As coisas mais simples

Quando eu era criança, um dos meus programas favoritos era ir ao McDonald’s: um McChicken, uma batata média, um guaraná e um nuggets de seis com molho caipira e eu estava no céu. Se fosse seguido de um cinema, então, o dia ganhava o status de melhor dia do ano.

Lembro o dia em que um vizinho comentou, todo animado, que almoçava toda terça-feira no McDonald’s porque ficava até tarde na escola. Outro vizinho, mais velho e mais cínico, devolveu: “Eu almoço quando quiser”.
 
Eu logo virei o outro vizinho. Comer no McDonald’s passou a ser a opção C e ir ao cinema virou parte da rotina. Vieram novas experiências, novas ambições e, sem perceber, foi ficando cada vez mais trabalhoso ter a mesma satisfação que um mero fast food me trazia aos doze anos de idade.
 
Ano passado, fui ao Burger King gravar um vídeo para um cliente. Precisávamos registrar pessoas comendo, e meu chefe disse: “Podem pedir o que quiserem”. Olhei para minha colega e percebi que ela tinha nos olhos o mesmo brilho que eu. Parados em frente ao balcão, era como se eu voltasse a ser aquela criança prestes a pedir um McChicken. Nós rimos. Ambos, felizmente, podiam tranquilamente bancar aquela refeição, mas o fato de podermos escolher hambúrgueres e batatas fritas ao bel-prazer nos trouxe uma alegria tão inocente, tão simples. E como é bom alegrar-se com as coisas simples…
 
Recentemente estive em uma cidade do interior de São Paulo, junto a algumas dezenas de jovens voluntários, para uma tarefa ousada: construir uma capela em três dias. Toda comunidade se movimentou para receber e alimentar as setenta bocas famintas. A cada dia, depois de horas de trabalho sob o sol, a refeição era sempre um dos momentos mais esperados. Não havia luxo, não havia frescura: havia o carinho de pessoas que passaram dias buscando doações de alimentos e horas preparando panelas e panelas de comida para alimentar nossos corpos suados.
 
Você entra na fila, pega o seu prato, equilibra um garfo ou uma colher — e com sorte uma faca — e observa os rostos sorridentes amontoando arroz, feijão, farofa, macarrão, carne, batata, cenoura, tomate e salada a sua frente. Com a outra mão, você pega um copo de plástico com suco e um guardanapo e procura uma sombra: pode ser uma cadeira, um banco, um pedaço de madeira ou um espaço no muro onde você simplesmente possa apoiar as costas. Você tenta explicar para o cachorro vira-lata que aquela comida é só para você e usa todo o equilíbrio adquirido no alongamento da manhã para se sentar sem derrubar o suco, a salada, o garfo e o guardanapo. O prato de vidro está quente com os dois quilos de comida, então você usa o capacete no colo como apoio e se prepara para dar a primeira garfada sem derrubar um grão de arroz.
 
Essa será a melhor refeição da sua vida.
 
Você dá risada ao se lembrar da vez em que reclamou da falta de um jogo americano no restaurante; você termina de comer, alguém gentilmente aparece para retirar seu prato, repor seu suco ou oferecer uma gelatina. Você tem meia hora até voltar para a obra e não pensa duas vezes: estica as pernas ocupando toda sombra do muro de cimento, tira os sapatos, apoia a cabeça no capacete e fecha os olhos. Você está no céu. Minutos depois você acorda mais descansado do que poderia imaginar, pronto para voltar para o sol e carregar mais vigas de madeira.
 
O ritmo da minha vida — e sei que o da maioria das pessoas — é sempre muito agitado. Há sempre algum lugar para ir, algo importante a fazer, algo novo a conquistar. E não vou mentir: eu gosto disso. Gosto de ter metas, de ter ambições, de tentar ser melhor, estar melhor.
 
Mas é um privilégio, nesse ritmo louco, ter a chance de parar por um instante e lembrar que o chão de asfalto pode ser tão macio quanto um travesseiro de plumas.
 

Foto: Acervo pessoal

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Cotidiano

Feliz dia novo

Durante mais de 20 anos da minha vida, passei a virada do ano exatamente no mesmo lugar, com as mesmas pessoas: minha família. A casa onde tios, primos e afins reuniam-se era situada em um lugar estratégico onde era impossível ver qualquer tipo de fogos, e a proximidade com uma favela sempre deixava dúvidas sobre o teor dos estouros. Foram fogos? Foram tiros?

Havia uma superstição de que os desertores sofreriam as consequências. “Vai pra praia com os amigos? Certeza que vai chover!” “Fulana foi viajar com o namorado, acredita?! Aposto que vão terminar!” A primeira vez que passei o réveillon longe da família foi em 2007, quando fui a Fortaleza com a namorada e alguns amigos. Tenho certeza que o motivo de eu ter passado as últimas horas do ano vomitando foi o excesso de comida, e não uma maldição. O namoro terminou algumas semanas depois. 
 
Particularmente, nunca dei tanto peso para a data em si, talvez porque eu tenha a sorte de passar praticamente o ano todo rodeado por pessoas que gosto e de não precisar de datas definidas para reuni-las.
 
Ou talvez porque eu reconheça a arbitrariedade dessa data.
 
Em algum ponto da história, decidimos que uma posição específica da Terra em relação ao Sol seria um marco; que uma vez que nossa bola azul cruzasse essa linha de chegada imaginária, daríamos um grande reset no jogo de seus habitantes. Aí, em 1582, o Papa Greg e sua turma perceberam que estava tudo errado e decidiram dar uma ajustadinha nessa linha, puxando-a uns dez dias para trás. “Vamos pular do dia 4 de outubro direto pro dia 15?” “Bora!”
 
Eu não teria feito aniversário em 1582…
 
Cada país resolveu adotar o calendário quando estava a fim, o que levou alguns anos. Tipo uns 350. Mas não foi só isso. Para evitar novos grandes ajustes no futuro, resolveram calcular direito essa história de ano bissexto, afinal, o ano trópico não tem EXATAMENTE 365 dias, mas 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos.
 
(Parênteses aqui. Uma busca rápida na internet vai mostrar que são considerados dois cálculos para a duração do ano: o ano sideral, que usa as estrelas como referência, e o ano trópico, que leva em consideração as estações do ano. E, não, eles não têm a mesma duração. VAI VENDO!)
 
Pois bem, com esse negócio de um ano ter 365 dias, mais um quarto de dia, decidiram enfiar um dia a mais em fevereiro a cada quatro anos. Só que, de novo, esse “um quarto de dia” não é EXATAMENTE um quarto de dia. E como a gente compensa esses minutinhos que a gente está colocando de brinde a cada ano? Fácil: a gente cancela o ano bissexto a cada 100 anos, nos anos múltiplos de 100!
 
“Nem vem! O ano 2000 foi bissexto que eu lembro muito bem. Teve enchente, teve Olimpíada e teve 29 de fevereiro, sim!” — você pode estar pensando.
 
É que a coisa não para por aí: a gente cancela o ano bissexto nos anos múltiplos de 100… A MENOS que eles sejam, também, múltiplos de 400.
 
Olha. Que. Simples. Tudo para manter uma linha imaginária mais ou menos no mesmo lugar todo ano.
 
Seja como for, é fascinante pensar como ciclos arbitrários têm o poder de nos inspirar, de nos fazer refletir, de criar novas metas e ressuscitar velhos sonhos. E também de nos dar uma folga. Afinal, seria excruciante andar por aí carregando décadas de decepções e escolhas erradas nas costas, sem poder encostá-las ali num cantinho de dezembro antes de seguir adiante.
 

Fico pensando como, todos os anos, mais ou menos no mesmo ponto do universo, o dia 1º de janeiro vai surgindo no horizonte, timidamente, de hora em hora por todo o planeta, trazendo logo atrás um ano carregado de sonhos, alheio ao mundo de expectativas colocadas sobre ele. 

Foto: Wikipedia

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Contos

O galpão

Ele era um homem alto. Tinha mais de um metro e noventa de altura e energia para derrubar um touro ou levantar um trem se precisasse. Mas naquele entardecer não precisava levantar um trem, nem sequer um carro ou uma caixa de papelão: simplesmente procurava por algo que não conseguia encontrar.

Tinha pressa. Entrou no galpão, certo de que o que buscava estava ali. Foi tateando as paredes em busca do interruptor, mas não o encontrou. Não fosse por uma discreta penumbra que vazava pela claraboia, estaria em uma total escuridão.
 
A sensação era de que o galpão há pouco estivera ocupado, movimentado, vivo, mas agora estava abandonado; um vazio de móveis e objetos escondidos no breu. Era possível que alguns vidros estivessem quebrados, talvez uma fina camada de pó se estivesse formando sobre os móveis, mas à medida que a noite caía e a claraboia tornava-se inútil, enxergar qualquer coisa tornava-se impossível.
 
Tateou as longas mesas, o alto das prateleiras. Nada. Agachou-se e passou a engatinhar para não topar nos móveis ou tropeçar nos desníveis do assoalho. Chegou até outra parede e encontrou uma tomada.
 
Ali certamente haveria um interruptor.
 
Apoiou-se nos tijolos e tentou levantar-se… mas já não podia mais. Por mais que tentasse, já não se equilibrava sobre os pés. Manteve-se no chão e esticou o braço o mais alto que pôde, mas não foi o suficiente. Logo ele, que sempre alcançou tudo que quis, agora se limitava a poucos centímetros de altura.
 
Se ao menos tivesse uma lanterna…
 
Moveu-se até um grande móvel, abriu a porta do armário que estava à sua altura e deparou-se com um baú de madeira e ferro. Tentou abri-lo, mas não tinha forças. Apalpou seus próprios braços com estranhamento: era possível que estivessem encolhendo?
 
Não tinha tempo para pensar naquilo. Precisava correr. Arrastou-se como pôde e puxou as gavetas que alcançava, uma após a outra. Como podiam parecer tão altas tão de repente? Uma delas caiu sobre ele, espalhando seu conteúdo pelo chão. Papéis e mais papéis… De que adiantavam os papéis se não enxergava as letras? Continuou tateando o solo até que sentiu algo que enfim lhe poderia ser útil.
 
Uma vela.
 
Precisava apenas de um fósforo para acendê-la e encontrar o que tanto buscava. Mas o que era mesmo que buscava? Seus pensamentos estavam confusos. Estava tão pequeno que qualquer um que entrasse ali – talvez até buscando o mesmo que ele – poderia pisá-lo e destruí-lo sem sequer perceber.
 
Uma dor nas costas começava a se alastrar desde a nuca até a lombar. Já não se reconhecia mais, e sentia-se feio. Enfiou-se debaixo de um gaveteiro na esperança de encontrar um fósforo, mas já tinha dúvidas se seria capaz de riscá-lo e acender a vela. Encontrou o nada.
 
Tentou seguir em frente. A essa altura queria apenas sair daquele lugar, mas percebeu que suas costas estavam presas sob a madeira áspera do móvel. Num esforço hercúleo, empurrou seu corpo diminuto para fora dali e só então percebeu as asas que se abriam atrás de seu corpo. Tentou movimentá-las, mas uma nova dor tomou conta de seu já irreconhecível corpo, dessa vez no abdômen. Olhou para baixo e notou um ponto brilhante, depois outro, e mais um, até que quase metade de seu corpo estivesse brilhando. Um verde forte, fluorescente.
 
Era um vaga-lume. 
 
E então deu dois passos e voou para fora do galpão pela fresta de um vidro quebrado, deixando atrás de si um rastro de luz.
 

Foto: Shutterstock

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cinema, Cotidiano

Conectados

“Esqueceram de Mim” foi o primeiro filme que vi no cinema. A extinta sala 3 do cinema da Paris Filmes do Shopping Ibirapuera tinha pouco mais de 100 lugares — provavelmente uma das menores da cidade, mas eu não sabia disso. Muito menos sabia que 15 anos depois trabalharia naquela empresa que por tanto tempo estampou os ingressos dos filmes que vi na adolescência.

A sala estava lotada, e alguém sentou na poltrona à minha frente, bloqueando parte da minha visão. Migrei para a poltrona ao lado, dividindo o espaço com uma amiga. Do mesmo assento, assistimos fascinados às aventuras de Kevin McCallister, interpretado por aquele ator que não sabíamos o nome.

Era 1991 e, para um garoto de sete anos de idade, qualquer assunto que não estivesse nos livros da escola, na Barsa (onde?!) ou em alguma revista era completamente inacessível — incluindo o nome do ator que interpretava Kevin McCallister em “Esqueceram de Mim”.

Um ano inteiro se passou até que uma reportagem da revista Veja enfim revelou o grande mistério. 

Disquei do telefone vermelho para o 571-6291 e minha colega de poltrona atendeu.

— Descobri o nome dele! Adivinha! Começa com M!

O mundo mudaria muito nas décadas seguintes, conectando pessoas e espalhando informações de forma inimaginável. Levei 20 minutos para encontrar a reportagem da foto, e pareceu uma eternidade. Hoje basta um clique — literalmente — para saber que Macaulay Culkin é fã de luta livre e World of Warcraft, mede um metro e setenta e divorciou-se após dois anos de casado.

Liv Tyler da capa do meu fichário hoje está no meu Instagram, onde descobri que seus filhos estão grandes demais para pijamas de bichinhos, e onde posso acompanhá-la enquanto anda a cavalo com a família. É possível até mesmo alfinetar um presidente e receber a resposta por Twitter minutos depois.

Aqueles que até recentemente estavam tão distantes de nós agora parecem estar aqui do lado, suas vidas conectadas às nossas, nossos celulares notificados a cada passo. Mas quanto dessa conexão é real?

Há alguns anos gravei a narração para o teaser de um longa-metragem em desenvolvimento nos EUA. O produtor/editor me conheceu pessoalmente alguns meses depois.

— Cara, parece que eu te conheço há séculos, de tanto que eu já ouvi sua voz! — disse ele no primeiro aperto de mãos.

Sinto que conheço profundamente o apresentador e os convidados de um programa semanal  — “Conectados”, vejam só — que legendo há mais de um ano para uma companhia aérea. Até que nos cruzamos pelos corredores e me dou conta de que nem sabem que eu existo. Por que saberiam?

Como roteirista de vídeos corporativos, já perdi a conta de quantas vezes escrevi a frase: “O mundo está cada vez mais conectado”.

Agora só falta dizer: conectado com o quê?


Outro dia fui ao cinema com a mesma amiga — cada um em sua poltrona. Não conseguia lembrar que outro filme o ator do trailer tinha feito. Puxei o celular, abri o IMDb e conferi toda sua filmografia. Depois coloquei o aparelho no modo avião para me desconectar do mundo e enchi a mão de pipoca, aguardando o filme começar. 

Foto: Revista Veja, 15 de janeiro de 1992.

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família

Boyhood

Quando eu era pequeno, um dos grandes ritos de passagem era poder ir sozinho à lojinha de presentes e guloseimas que ficava literalmente a uma quadra do prédio onde eu morava. A infância era dividida entre poder/não poder ir sozinho até a Rosinha: uma distância que podia ser integralmente vigiada por pais atentos da janela da cozinha.

Fui uma criança de prédio. Brincava de pega-pega, alerta e esconde-esconde, que incluía as variações vale/não vale passar pela janelinha. Quebrei vidro, esfolei o joelho, brinquei na quadra até as luzes apagarem e alguém gritar do terraço que era hora de subir.

Outro dia tentei lembrar quando foi a última vez que brinquei de esconde-esconde. Não consegui. Em algum momento cresci, deixei de passar pela janelinha e, sem perceber, o “mãe, posso descer?” virou “mãe, tô saindo.”

A Rosinha fechou. Veio a fase do “não volta tarde”, do “não bebe muito”, do “avisa quando chegar”.

Tirei carta. Dei ré com meu Uno Mille numa Mitsubishi Station Wagon na frente de casa. “Pai, bati o carro.”

Fui morar fora. Fui morar sozinho.

E então os papéis se inverteram.

Isso ficou mais claro do que nunca quando decidi presentear minha mãe e minha tia (que somam 140 anos de idade) com ingressos para o show de um cantor italiano. Como um pai caridoso que vai atrás da meia-entrada para o filho adolescente, me vi em meio a uma odisseia que envolveu duas idas ao local do evento, um sistema fora do ar e clientes de meia-idade revoltados com o descaso.

— Mas que inferno isso! Vou processar todo mundo! — esbravejava um.

— Escuta, mas a gente não saiu de casa pra se divertir? — rebatia a esposa, tentando salvar o programa, fadado a falhar antes mesmo de começar.

No mesmo guichê, um pai comprava um ingresso de um show de rock para a filha.

— Ih, só tem lugar lá em cima. Paciência, vai esse mesmo. E ai dela se reclamar! Ainda vou ter que vir buscá-la depois do show — confidenciou ele ao senhor que ia processar todo mundo.

Horas depois, saio com um par de ingressos na mão e uma série de preocupações na cabeça. Se eu for levar, como vão voltar? Posso ficar no shopping esperando… Ah, elas voltam de táxi. Será que é perigoso? Elas não têm aplicativo… Ah, mas na porta sempre tem táxi. E se eu voltar pra buscar depois? Qualquer coisa tem minha prima. O que é Uber? Põe o cinto. Carrega o celular, hein? Liga quando chegar.

Sobreviveram. Radiantes.

Curioso pensar como o jogo vira, como o sol muda de lado. Não importa se você foi um grande líder, um grande executivo ou um grande boçal: se você tiver sorte — e esta é a grande ironia — se você tiver sorte, vai viver o suficiente para tomar um banho de humildade e perceber que você invariavelmente precisa do outro.

Hoje você dá conselhos, amanhã recebe. Hoje você cuida, amanhã é cuidado. Hoje você pode estar no alto da roda gigante, mas amanhã — se tiver sorte — ainda vai estar nela para apreciar a beleza da descida.


Outro dia cheguei à casa dos meus pais e vi uma carta da prefeitura sobre a mesa.

— Seu pai levou outra multa, mas não dá bronca nele — disse minha mãe, enquanto tricotava.

Ele desceu as escadas, veio até mim, cauteloso.

— Viu, eu tomei uma multa porque eu tava sem cinto, mas já aprendi a lição. Não faço mais, tá bom?

E foi para a cozinha.

Foto: The King Photography

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Cotidiano

A história sem fim

Quando acordei naquela manhã de sábado, não imaginava que em algumas horas estaria na sala de espera de um hospital público, trocando mensagens de texto com um policial militar, digitadas na tela estilhaçada do meu próprio celular.

O dia começou no chão de uma sala de aula na Zona Sul de São Paulo, onde acordei determinado a pintar aquela instituição, ao lado de outras pessoas que trocaram dias de descanso por um fim de semana com rolos, pincéis, pó no nariz e uma sensação de realização (e dores no corpo) digna de um maratonista ao cruzar a linha de chegada. Mas como bem sabe Vanderlei Cordeiro de Lima, nem sempre tudo sai como esperado.
 
Sentado no chão, observava enquanto Luks caminhava sobre o telhado, pintando a parte superior de um dos prédios. Sentado no chão, percebi quando a telha cedeu. Sentado no chão, percebi quando
               L                                                        
               U
               K
               S
                 caiu pelo vão do telhado e veio ao chão, levando consigo a escada que atrapalhava sua queda livre.           
 
Sentado no mesmo chão, percebi o barulho da queda transformar-se em silêncio enquanto a multidão aglomerava-se ao seu redor em meio a suspiros de meu Deus, o que aconteceu?
 
Na dúvida entre um braço quebrado e um mero arranhão, partimos, Luks e eu, rumo ao hospital, a bordo da ambulância do SAMU. Ele imobilizado com um colar cervical, eu tentando entender em que momento dos minutos anteriores a tela do meu celular se espatifara.                 
                                                            
— Já andou de ambulância? – pergunta a paramédica.
 
— Não – ele diz.
 
— E você? — brinco com ela.       
              
Já na sala do pronto-socorro, aguardamos atendimento em meio a pacientes com crises de asma, ossos quebrados e cortes misteriosos.
 
— Seu sobrenome é Barros? — pergunto.
 
— Não, por quê?
 
— Erraram seu nome na pulseira do seu braço.
 
— Que ótimo.
— Você fez cinema, né?
 
— Aham. E você escreveu um livro né?
 
— Aham. O que você curte de filmes?
 
— Gosto muito do Wes Anderson, sabe?
 
— Sei! Curto muito aquele…
 
 
— Isso.
 
— Eu também.
 
— Tem muita gente aqui?
 
— Oi?
 
— É que eu não consigo olhar pro lado com esse troço no pescoço.
 
— Ah! Tem umas quatro. O da sua esquerda parece estar desmaiado…
 
Chegam mais alguns. Pedem que eu aguarde na sala de espera, onde em meio a atendentes sobrecarregados e pacientes desesperados, um familiar ansioso encontra outro, já mais aliviado.
 
— ‘Tão costurando ele agora. Saiu a pele da mão todinha, veio parar aqui no braço!
 
— Mas graças a Deus não perdeu a mão!
 
— Quando eu entrei aqui, acredita que o segurança falou: “Tá procurando o rapaz da padaria? Esse aí perdeu a mão…” Pode?!
 
— Imagina a força que ele fez pra puxar o braço!
 
— Eu sabia! Quando falaram o que aconteceu, eu logo pensei: “alguma coisa emperrou na máquina e o Thiago foi lá consertar. É a cara do Thiago fazer isso!”
 
É a cara do Thiago…
 
Uma enfermeira me chama. Perceberam que o sobrenome de Luks não é Barros. A atendente sobrecarregada faz a correção.
 
Meu celular vibra. Um joinha de um número desconhecido surge na tela quebrada – o mesmo número que me ligara cinco vezes na madrugada anterior, quando a tela ainda não cortava meus dedos.
 
Quem é?
Antonio Filipe?
Sim. Quem é?
O senhor teve um celular roubado
em outubro de 2015?
[foto do celular]
[foto do B.O.]
Sim. Quem é?
Soldado Afrânio. Nós recuperamos o seu celular
numa operação ontem à noite.
Sério?! E agora…?
Pode comparecer à XXª DP com o B.O.
e retirar o aparelho.  Mas liga lá antes!
E parabéns por ter registrado o roubo.
Nossa. Obrigado!
De nada.
Viu, se o senhor quiser e puder
mandar um e-mail de agradecimento
ao batalhão, este é o e-mail: [e-mail]
[fotomontagem com celular, viatura e brasão]
 
A enfermeira me chama novamente. Seguimos para o raio-X. Passadas três horas desde o embarque na ambulância, apenas um sentimento toma conta de nós dois: fome.
 
O raio-X aponta o que a essa altura já tínhamos certeza: todos os ossos estão em seus devidos lugares.
 
— Mas, assim, eu não sou ortopedista, né? O ideal seria o senhor passar com o especialista antes de ir — informa o médico.
 
— Naaa, ‘tô de boa.
 
— Então é só ir até a sala 10 que a enfermeira tira o acesso pra você.
 
— Dói muito pra tirar – pergunta Luks à enfermeira, já na sala 10.
 
— Dói menos que pra colocar, né, meu filho. Vocês fazem cada pergunta…
 
Quem seriam “vocês”? Vocês homens? Vocês jovens? Vocês pessoas que caem do telhado?
 
Uma acompanhante agitada aparece à porta.
 
— Moça, minha filha ainda ‘tá com muita dor! O remédio não ‘tá fazendo efeito!
 
— VOCÊ NÃO ‘TÁ VENDO QUE EU SÓ UMA SÓ?! ELA VAI TER QUE ESPERAR! — brada a enfermeira enquanto arranca a agulha do braço de Luks.
 
Partimos.
 
Luks volta às atividades em meio a gritos de e aí, ‘tá tudo bem, não foi nada, mesmo? Eu ligo para a delegacia. Pedem para que eu ligue na noite seguinte, depois na manhã seguinte.
 
— Amigô, isso aqui é uma delegacia! Sabe quantos celulares tem aqui?!
 
Pedem que eu compareça pessoalmente. Compareço pessoalmente.
 
Aguardo enquanto um rapaz faz um B.O. de uma mochila roubada.
 
— Volta daqui a 40 dias, quando o escrivão que guardou seu celular volta de férias. Vai saber em que armário ele guardou o celular…
 
Como diria Red ao final de Rita Hayworth and the Shawshank Redemption, eu espero que tudo dê certo. Eu espero que fazer o B.O. seja o suficiente para recuperar um celular roubado. Eu espero que a moça com dor tenha se recuperado. Eu espero que Thiago possa voltar a trabalhar. Eu espero que médicos e enfermeiros tenham sobrevivido àquele turno, e aos outros. Eu espero que nosso trabalho tenha feito a diferença naquela comunidade.
 
Eu espero.
 

Foto: Acervo pessoal

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Cotidiano

Pornográfico

Desde pequeno eu sempre adorei matemática. Perceber o mundo em números, com uma lógica clara, com certos e errados definidos, sempre me fascinou.  Na sétima série, tive um professor (casado com a professora de Língua Portuguesa, já fazendo um prenúncio da minha vida futura…) que brincava com a turma ao ensinar planos cartesianos, dizendo ser aquele seu momento favorito: o momento pornográfico.

Brincar com a matemática também fazia parte do meu dia a dia, mas conforme fui migrando para o mundo das palavras, os números foram virando coadjuvantes, meras casas decimais a serem arredondadas.
 
Um mês antes de me mudar para Los Angeles, em 2009, comecei a registrar com papel e caneta meus pensamentos, aspirações, medos e tudo aquilo que preenchia minha cabeça prestes a embarcar em uma nova aventura. Poucos meses depois, quando os registros revelavam uma adaptação difícil à nova realidade, recorri aos números para avaliar cada um desses registros diários, buscando uma lógica, um sentido, uma progressão; buscando transformar o caos da vida em uma ciência exata, em uma curva ascendente que me provasse que cada dia era melhor que o anterior e me fizesse conseguir aproveitar aqueles que deveriam ser os melhores dois anos da minha vida. E foram.
 
Em 2011, voltei ao Brasil com uma missão: ter anos tão incríveis quanto aqueles nos EUA. Com todas as parciais anotadas, tinha um recorde a bater. Mas como superar anos com tantos eventos extraordinários? Com tantas viagens, tantos novos amigos, tantas novas experiências?
 
Os anos seguintes teriam seus altos e baixos, e, embora minha memória ainda lembrasse os anos nos EUA como os melhores em muito tempo, a matemática dizia o contrário. Fiz como meu professor de Matemática e usei o método pornográfico para entender, com a ajuda dos números que tanto me fascinam, os anos que as palavras registraram com tanto detalhe.
 
Cheguei a 2015 com um 2014 mediano nas costas, cheio de picos e vales, e sem grandes expectativas. Trabalhei mais. Viajei menos. Descansei menos ainda. Somem-se a isso dois assaltos, instabilidade profissional e a perda de um ente querido: 2015 tinha tudo para entrar para história como um ano esquecível. Até que a matemática provou que o ano não apenas tinha sido bom: tinha sido o melhor. 
 
Como um ano aparentemente tão trivial poderia ter sido tão incrível? Como minha memória poderia me enganar tanto?
 
Mas os números não me enganam. Olhei para trás e tentei deduzir a fórmula, reduzir a fração, chegar a um denominador comum. E concluí que a chave estava justamente ali: no olhar.
 
Notei que em 2015 olhei menos para fora e mais para dentro. Olhei mais para os picos do que para os vales. Não olhei com raiva. Olhei com gratidão. Olhei com desapego. Olhei com as lentes que escolhi olhar.
 
E ao buscar algo para justificar um ano surpreendentemente bom, não descobri nada extraordinário. Descobri que extraordinário é viver. É só olhar direito.
 

Foto: Acervo pessoal

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Cotidiano

O baile

Aqueles que me conhecem sabem que levo uma vida irritantemente organizada. Gosto de saber que o mundo ao meu redor está sob controle, que tudo está na sua devida prateleira, caixa ou gaveta, e por isso uso diariamente uma agenda – dessas de verdade, que você pega na mão e derruba café. É como um guia da NET com a programação da minha vida.

Naquela sexta-feira, véspera de feriado, meu guia da NET dizia que sairia do trabalho às seis da tarde, limparia a casa, terminaria os trabalhos do curso, arrumaria a mala, jantaria na casa dos pais, daria carona para um amigo e, enfim, pegaria um ônibus para Jundiaí.
 
Mas nos 400 metros que separam minha casa do trabalho, tudo mudou.
 
Como um plantão urgente que invade a programação, um rapaz que descia da moto estacionada veio em minha direção e pediu meu celular. Depois meu relógio, minha corrente, meu dinheiro, minha mochila… com a minha agenda. Segundos depois, ele partia na moto com tudo aquilo que até então era meu, e eu seguia na direção oposta, a pé, reorganizando mentalmente a gaveta que ele sem perceber jogara para o alto.
 
Chego em casa e lembro que não tenho um telefone fixo. Em seguida, descubro que o Skype não faz chamadas de emergência. Vou até meus pais. No caminho, um rapaz se aproxima da minha janela, totalmente aberta, e pede um trocado. Sorrio com a ironia.
 
–  Cara, acabei de ser assaltado…
 
Ele me olha fundo nos olhos, para de sorrir e responde:
 
–  Eu sei. Eu vi tudo. Eu vi tudo! – e vai embora.
 
Faço o B.O. “O IMEI? Tenho sim, peraí! Ah, não, esquece, ‘tava na agenda.” Pego um celular emprestado, corro para a Vivo: a loja fechou. Vou até outra, troco o chip. Aviso meu amigo que não poderei buscá-lo como planejado. Volto para casa, termino o trabalho como dá, arremesso as coisas na mala, passo na farmácia para comprar, de novo, o remédio que estava na mochila e chego em cima da hora para seguir viagem.
 
Já no ônibus, penso que perdi o celular, o dinheiro, o relógio, mas que o que mais me incomodou foi perder a sensação – ou a ilusão – de que tenho tudo sob controle.
 
O assaltante mudou o canal no meio do filme, tirou os livros da ordem alfabética. Tinha uma vida detalhadamente desenhada a lápis. E então veio uma borracha: uma borracha que pode vir a qualquer momento, de qualquer lugar. Um emprego para o qual você deixa de ser essencial, uma pessoa que de uma hora para outra não está mais ali, uma perna quebrada, um celular roubado: basta uma peça torta para dar game over no tetris perfeito que você criou com as peças que a vida mandou.
 
Como diz a música de Dave Matthews, though we would like to believe we are, we are not in control.
 
É como se estivéssemos numa grande festa, a banda a todo vapor. Talvez o ritmo mude, talvez a música acabe, mas a playlist não está sob nosso controle. A nós cabe apenas continuar dançando. 
 

Foto: “O baile”, Paulo Rego.

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