cinema

Personal Statement

“Nós escolhemos você!”, dizia a voz do outro lado da linha. 

Era novembro de 2008 – uma década atrás –, estava no trabalho e, menos de duas horas antes, estava em uma sala a 20 km dali, sendo entrevistado por seis pessoas que sentavam em semicírculo a minha volta e me bombardeavam com perguntas em inglês para a primeira edição da bolsa de MFA in Screenwriting oferecida pela CAPES/Fulbright.
 
Para chegar àquela sala, foram necessários uma infinidade de documentos e materiais, produzidos ao longo de algumas poucas semanas. Entre eles, meu Personal Statement  um texto que basicamente responde à pergunta: quem é esse cara?
 
Já estava seguro do brilhantismo da minha primeira versão – que para mim, ingenuamente, era a versão final – quando pedi alguns feedbacks, apenas para constatar a perfeição da mesma. Recebi o seguinte retorno: “Está correto, está tudo aqui, mas não acho que está dizendo quem você realmente é… Por que você não tenta ser mais honesto?” 
 
Então eu fui.
 
Eu morro de medo de ir ao cinema. Não, não estou falando de filmes de terror. Estou falando de filmes em geral.
 
Esse era eu, uns 12 anos atrás. Não tenho a menor ideia de onde esse medo sem noção possa ter surgido, mas por muitos anos ir ao cinema era sempre uma experiência aterrorizante. Até que Titanic chegou aos cinemas e eu não queria ser “o cara que não viu Titanic”. Então lá fui eu enfrentar meu terror por três horas seguidas… e não é que eu gostei? Na semana seguinte, me forcei a ir ao cinema de novo. E de novo. Até que de repente eu era um aficionado por filmes, vendo quatro por semana, com um quarto lotado de pôsteres.
 
Eu não posso dizer, porém, que James Cameron é o responsável pela minha paixão por filmes. Desde muito pequeno eu gostava de contar histórias  é só perguntar para qualquer vizinho que recebia meus livrinhos caseiros aos cinco anos de idade. Eu também não mandava mal na escola, e até ganhei alguns concursos de redação que me deram uma bolsa de estudos na oitava série, mas ainda não via nada demais nisso. Eu gostava de números. Meu negócio era a Matemática. 
 
Aos 16 anos, uma vontade repentina de conhecer outras culturas me levou à Austrália, onde passei seis meses do Ensino Médio. Não é de se surpreender que o inglês foi apenas uma das coisas (talvez até a menor delas) que eu aprendi. Além das experiências incríveis que eu trouxe para casa após viver sozinho em um país desconhecido, havia também um diário que me forcei a escrever todos os dias: mais uma vez, contar histórias era parte da minha rotina e eu nem tinha percebido.
 
Ao voltar, já era hora de decidir “o que você vai ser quando crescer”. Meu amor por números me puxava para a ciência, mas eu nunca me esquecia daquela sensação mágica que eu tinha ao ver um filme que eu gostava. Aquela sensação de “eu quero fazer parte disso”, de “como é possível alguém fazer uma sacola plástica parecer engraçada e poética”?  Então eu percebi que a minha decisão já havia sido feita há muito tempo: eu queria ser um contador de histórias. Eu queria ser um cineasta.
 
Uma ajudinha de uma boa escola de cinema não cairia mal, então dediquei um ano inteiro aos estudos para entrar na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. E em 5 de fevereiro de 2003, meu nome estava entre os 35 futuros cineastas.
 
Ao chegar lá, uma sensação de “é só isso?!” tomou conta de mim. Talvez fosse a alta expectativa, mas a faculdade não foi exatamente o que eu esperava. Não que eu não tenha aproveitado  eu certamente aprendi muito durante as produções acadêmicas, aulas de história e trocas com os colegas  mas logo percebi que ainda havia um longo caminho até alcançar aquela sensação de preenchimento que eu tanto buscava. Foquei meus estudos em Roteiro, e embora eu tenha explorado outros campos, fazendo algumas eletivas em Astronomia e Estatística, a ciência agora tinha um papel secundário na minha vida.
 
Terminada a faculdade, com meu primeiro roteiro de longa em mãos, cheguei à Paris Filmes. Trabalhar numa empresa de distribuição logo após a faculdade foi uma experiência interessante  pra dizer o mínimo. Aprendi, de uma vez por todas, que fazer filmes é fazer parte de uma cadeia econômica: pode ser arte, pode ser transgressão, mas se você quer que seu filme seja visto por milhares de pessoas, ele eventualmente vai fazer parte dessa cadeia, onde valores como bom e ruim são definitivamente diferentes daqueles que a gente aprende na faculdade.
 
Ali eu aprendi muito sobre o mercado de cinema. Ainda estou aprendendo. Aprendi, por exemplo, que o número de brasileiros que assistem a filmes nacionais está caindo, basicamente porque não temos um número suficiente de bons contadores de histórias. Então percebi que se eu queria mudar isso, eu precisava continuar estudando. Foi aí que apareceu a UCLA Extension. Foi durante esses 18 meses de aulas online que me dei conta de quão profunda era a toca do coelho. Também foi lá que terminei meu segundo roteiro e que aprendi que é necessária uma dose gigante de humildade para sobreviver no mundo da escrita, já que seu trabalho vai estar sempre sujeito a críticas. Vi anos e anos de estudo por trás dos filmes mais simples. Vi um método, e isso me fascinou ainda mais. Contar histórias não era apenas uma arte: era uma ciência.
 
Olhando para trás, percebo que ainda há muito que não sei, mas o que sei é que quero continuar aprendendo; quero conhecer o mundo para ter o que escrever; sair do Kansas nem que seja para descobrir  de novo  que “there’s no place like home”. Sei que escrever me faz sentir livre; me torna quem eu quiser, onde eu quiser, quando eu quiser. Também sei que as histórias têm o poder de tocar as pessoas, de influenciá-las; que o contador de histórias tem o poder de dominar, e que seu público são apenas pessoas que se permitem dominar. 
 
E pensando assim, como é possível que alguém não tenha medo de cinema?
 

Foto: http://www.theodysseyonline.com/things-people-who-get-scarred-by-scary-movies-know-to-be-true

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O primeiro dia

(Aviso: sei onde este texto começa, mas não sei bem onde vai acabar.)

Nos últimos meses tenho pensado muito no “primeiro dia”: o primeiro dia de aula, o primeiro dia de trabalho, o primeiro dia de viagem.
Quando era pequeno adorava o primeiro dia de aula. Abrir os livros novos, conhecer os professores, os colegas de classe… Lembro que na sétima série fiz uma viagem com família em fevereiro e fiquei extremamente desapontado por perder o primeiro dia de aula – para estar em alto mar.

Já mais velho, os “primeiros dias” começaram a vir acompanhados de uma certa tensão. O primeiro dia de trabalho trouxe um “será que eu vou conseguir dar conta? “Será que eu vou gostar daqui?” “Será que vão me chamar pra almoçar?”

O “primeiro dia” também me faz lembrar das “primeiras vezes”. A primeira vez que vi alguém, que visitei um lugar, que fiz alguma coisa.
A primeira vez que fui ao cinema foi para assistir a “Esqueceram de Mim.” A extinta Sala 3 do Shopping Ibirapuera era pequena e estava lotada. Alguém alto sentou na minha frente e tive de mudar para a poltrona ao lado e dividi-la com uma amiga para poder enxergar Kevin McCallister enganando os ladrões. Lembro bem dos logos da Paris Filmes que dominavam aquele cinema. Mal sabia eu que mais de duas décadas depois estaria trabalhando naquela empresa.

Aquele primeiro dia de trabalho também foi inesquecível. Minha chefe, grávida e hilária, me mandou assistir à cabine de “Boa Noite e Boa Sorte” e depois separar clippings, enquanto ela respondia e-mails, agendava entrevistas e marcava um doppler com o ginecologista.

Nunca mais esqueci os títulos dos filmes que distribuímos, nem o cheiro daquela sala de reunião, nem as pessoas que trabalharam comigo durante três anos e meio e que hoje são grandes amigos.

Muita gente entra e sai da minha vida sem hora marcada, mas alguns primeiros encontros não saem da memória.

Foi numa primeira conversa sobre a P-0 nos corredores do Anglo que Bob começou a se tornar meu melhor amigo, há mais de dez anos. Gritos exaltados em uma FestECA marcaram um primeiro encontro com outro grande amigo; uma conversa sobre um quase-acidente na estrada para Ubatuba e um convite para um almoço naquele-restaurante-que-parece-o-Subway na Hollywood Boulevard marcaram outros: todas histórias com um começo bem definido, mas sem data para acabar.
Na minha primeira semana nos EUA – uma integração em Boulder, Colorado – conheci a primeira brasileira. Ela estudaria Biologia em Austin (cidade que conheceria quase dois anos depois). Foi também por lá que tomei minha primeira cerveja no país – com uma paquistanesa que estudaria Jornalismo. O primeiro sushi foi para atender os desejos de uma psicóloga dominicana, que acabou pedindo o sushi errado e não conseguiu terminá-lo.
A brasileira continua em Austin, a paquistanesa voltou para o Paquistão e a dominicana casou-se e teve um filho. Em comum, temos aquela a semana em Boulder, o status de Fulbright Alumni e o fato de nunca mais termos nos visto.

Também foi nos EUA – já em Los Angeles, na casa de uma colega – que usei uma máquina de lavar roupa pela primeira vez. Como se diz amaciante em inglês, mesmo? Lembro do seu espanto e do seu riso ao saber que “nunca tinha feito aquilo antes”; da sua fascinação em perceber que aquele dia tão trivial ficaria marcado na minha vida –e talvez na dela.

E assim fui me dando conta de que cada dia que começa traz a chance de fazer algo pela primeira vez; de que cada dia que começa tem o potencial de ser o primeiro dia de uma nova história que está começando e eu nem percebi.


(E acabou que este texto acabou no primeiro dia do ano.)

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