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Efeito borboleta

Há pouco mais de seis anos, estive no Alasca com meu amigo Paul, e um dos lugares mais fascinantes que visitamos – entre tantos – foi uma baía chamada Sadie Cove. Naquele cenário praticamente deserto e eternamente iluminado, povoado apenas por animais silvestres e pouquíssimas cabanas como a que estávamos, decidimos nos aventurar em dois caiaques até o final da baía. Enquanto Paul aproveitava seu tempo tirando fotos das águias no céu e dos ursos a distância, eu seguia firme no meu propósito de chegar ao outro lado. Em certo momento, Paul deu-se por satisfeito com o passeio e decidiu voltar; eu segui: cheguei ao meu destino e decidi não descer do caiaque, mesmo com vontade de fazer xixi, em parte porque descer do caiaque sobre a água congelante exigia uma logística além do que estava disposto a enfrentar, em parte por medo de ser atacado por ursos que pudessem aparecer por ali. Ao me virar parar voltar, vejo Paul como um pequeno ponto já próximo à cabana. E uma enorme nuvem negra vindo em minha direção. Começo a remar e percebo que praticamente não saio do lugar… Não há o que fazer senão controlar a bexiga, lutar contra a cãibra e continuar a remar para chegar à cabana antes da tempestade. “Estou vivendo uma grande aventura ou entrando em pânico?”

Foram cerca de 40 minutos para ir e mais de duas horas para voltar. 
 
Paul me recebeu aliviado, mas também um pouco irritado. “Por que você não voltou antes?! Você e essa sua mania de fazer as coisas até o fim!” 
 
Eu e essa minha mania de fazer as coisas até o fim… Eu nunca tinha pensado em mim dessa forma, como alguém que “sempre faz as coisas até o fim”. Se tivesse, porém, teria levado isso como um elogio. É excelente terminar projetos, concluir planos, tirar tudo da gaveta para arrumar o quarto e, de fato, colocar tudo de volta. Mas o ponto é que as coisas mais importantes talvez sejam justamente as que não podemos fazer até o fim, as que não podemos ter controle.
 
Temos planos para a nossa vida, aí seguimos por ela e vemos que ela tem planos diferentes para a gente. Temos planos para os nossos filhos, aí seguimos e vemos que eles também têm seus próprios. Todos começamos uma jornada, direcionamos nossos caiaques, mas nem sempre cabe a nós concluir a viagem. É como o fenômeno fascinante do ciclo migratório das borboletas monarcas: borboletas que viajam milhares de quilômetros, de norte a sul dos EUA, fugindo das baixas temperaturas e buscando alimento. Não seria nada extraordinário, não fosse um pequeno detalhe: elas nunca completam o ciclo. Como sua expectativa de vida é baixa, são necessárias várias gerações de borboletas para chegar ao destino, de forma que nenhuma delas irá percorrer todo o trajeto. Algumas começam a jornada, outras terminam.
 
Recentemente as filmagens do meu primeiro longa-metragem foram concluídas. A jornada começou há mais de dez anos, em um computador que não existe mais, num quarto que não é mais meu. Lá começaram a surgir personagens, cenários, conflitos. Por muito tempo a jornada foi solitária: eu e eles. Passaram-se alguns anos, surgiu um diretor/produtor para dar um sopro de vida à história, dar um endereço e um coração aos personagens. Mais alguns anos se passaram, mais artistas entraram na jornada, deram cor, luz, som; atores literalmente deram vida às famílias que existiam apenas em forma de palavras. 

E ali a jornada deixou de ser minha. 

Uma nova geração de borboletas fez a história nascer em forma de filme e coube a mim apenas testemunhar o espetáculo. Em alguns meses, essa nova geração também termina sua jornada, e uma outra vai assistir a essa história e levá-la adiante para as gerações futuras, em uma jornada que eu jamais saberei como irá acabar. 
 
E tudo bem, porque às vezes na vida a magia está justamente em começar uma jornada para que outros a terminem.
 

Foto: Making of “Do Outro Lado da Lua” por Santi Asef

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Na natureza selvagem

“Alasca!? Mas você vai fazer o que no Alasca?” – foi a pergunta que mais ouvi ao revelar que passaria onze dias com um amigo no inóspito 49º estado americano.  Foi a mesma reação de quatro anos atrás, quando passei três semanas viajando sozinho pelo sul da Patagônia.
Há tempos tenho uma estranha atração por lugares isolados, frios, com pouca interferência humana. Chegar aonde poucos chegam exerce uma grande fascinação sobre mim, e por isso o Alasca esteve sempre na minha lista de destinos: nada me parecia mais incrível do que cruzar o Círculo Ártico pela famigerada Dalton Highway.
Mas ao chegar ao Alasca, minha imagem romântica foi aos poucos contrastando-se com temperaturas acima de 20ºC e ausência de neve. O fascínio deixou de ser o frio e o branco nas montanhas, mas o céu que jamais escurece; os dandaleões que voam contra o vidro do carro como flocos de neve; o albergue que não possui chaves pois nunca é preciso trancar as portas.
Após dez horas de estrada entre Anchorage a Fairbanks, acompanhado de sanduíches de brie de cabra, abacate com mostarda e Alaskan White Ale, seguir até o Círculo Polar me pareceu desnecessário. Durante meses só pensava naquelas quatorze horas de estrada não-asfaltada e na foto com placa que marca a latitude 66º33’, mas no momento em que de fato poderia embarcar naquela jornada, achei que já havia cumprido minha missão naquela região específica do estado.
Aí veio o arrependimento. Como pude não querer aquilo que queria tanto havia poucas semanas?

Mas aos poucos fui compreendendo que, como em um roteiro, a cena que me inspirou a escrever todo o filme às vezes não cabe mais na história. Talvez ela caiba em algum outro filme, daqui a alguns anos, quem sabe em algum outro ponto do distante paralelo 66º33’, mas por ora sua função é apenas permitir que o resto da história exista.
No filme deste verão entraram outras cenas: a águia sobrevoando o caiaque na Baía de Kachemak; a noite na Universidade de Fairbanks com a vista espetacular da montanha mais alta da América do Norte; o acampamento sob a chuva a 2ºC em Denali; os alces e ursos atravessando a estrada em Seward; os jogos de xadrez sob o sol da meia-noite. Entraram também personagens marcantes: a hilária atendente mal-humorada do albergue em Anchorage; a dona da lojinha de beira-de-estrada em Joy, que tem dezenove filhos adotados, vindos de famílias que os rejeitaram; a assistente social que cuida de jovens problemáticos em Barrow, onde o sol não nasce por 82 dias; o construtor de barco que passou cinco anos construindo o barco errado.
Nenhuma dessas cenas ou desses personagens estavam no roteiro que criei na minha cabeça, mas todos chegaram ao corte final, graças à cena que me levou até lá – mas não existiu. 
Não sabia, de fato, o que encontraria no Alasca, mas estava disposto a descobrir.
Como bem coloca Nilton Bonder em A Alma Imoral, de nada adianta sentar-se e esperar que o mar se abra para que sigamos em frente: é preciso primeiro marchar para então encontrar o caminho. E por isso sigo sempre em frente…
Não posso dizer que sei aonde estou indo, mas sei que estou no meu caminho.
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