Cotidiano

Só um pouquinho

Eu estava deitado de lado em uma maca, uma agulha de acesso espetada no meu braço, esperando para a receber a anestesia. Sob meu rosto, um pedaço de papel toalha. “É que você vai babar,” havia explicado o enfermeiro minutos antes. “Que sexy,” reflito.

Existem muitas coisas que me deixam tenso: andar de carro sem GPS por lugares desconhecidos, aguardar o salto numa plataforma de trapézio, organizar eventos sociais… mas fazer exames médicos não é uma delas. Prestes a ser invadido por um tubo no esôfago, minha maior preocupação era acordar falando besteira por efeito das drogas (nada que millennials não vivenciem com certa frequência).

Até aquele momento, o porteiro Jabson — sim, Jabson —, a recepcionista Leila e o enfermeiro Francisco haviam sido totalmente gentis e solícitos, validando minha teoria de que fazer exames não é muito diferente de ir a um spa.

Eis que se aproxima Marielza, a nova enfermeira.

— Abre a boca — ela ordena.

Dr. Henrique, que vai realizar meu exame, está do outro lado da sala, fora do meu campo de visão e também segue a linha “papo reto” de Marielza.

— Por que pediram esse exame pra você? — ele pergunta.

Tento olhar para ele, mas não posso me virar. Aguardo que ele venha se apresentar antes de me apagarem, mas ele continua ali, alheio à minha necessidade de conhecê-lo.

— Morde — comanda Marielza com uma peça redonda na mão. Eu obedeço.

— Catatepa dara a errame? — pergunto.

— Hein?

— Quanto tempo dura o exame? — repito.

— Uns dez minutos. Agora para de falar porque senão a peça vai cair da sua boca!

Antes que eu pudesse tirar qualquer outra dúvida, meus sentidos se vão. Acordo já na sala de recuperação, sem nunca saber a cara de Dr. Henrique nem poder dizer à Marielza que ela arruinara minha experiência relaxante daquela endoscopia.

Eu não duvido que Marielza e Henrique sejam profissionais competentes, afinal, eu ACORDEI da anestesia, na hora certa, e meu exame identificou direitinho todas as “ites” existentes. Mas se um “oi” a mais teria feito diferença para mim, que estava quase me divertindo, imagino àquelas pessoas normais, que se sentem desconfortáveis e temerosas a menor presença de um instrumento médico.

Criei cenários na minha cabeça que justificariam o comportamento despachado da dupla, tão destoante dos outros com quem havia interagido aquele dia: talvez Marielza não estivesse escalada para tabalhar aquele dia e tenha vindo ao trabalho às pressas, desfazendo todos os seus planos para aquela quarta-feira; Dr. Henrique talvez estivesse preocupado com o filho, cuja professora acabara de ligar, informando sobre uma briga com um colega na escola. O que chega para nós dos outros é sempre uma parte tão pequena…

É fato que eu também já fui Marielza/Henrique muitas vezes na vida; já não dei muita bola a quem precisava de atenção, já simplesmente “tirei da frente” o que precisava fazer; já fiz meu trabalho empregando o mínimo de esforço possível; já justifiquei meu comportamento culpando todo um cenário alheio à minha vontade.

Mas, no fundo, a conclusão é uma só, e é bastante simples: seja lá o que for, sempre dá pra fazer com um pouquinho mais de amor.

Foto: http://wumo.com/wumo/2016/03/05

Padrão
viagem

Você quer brincar na neve?

Era primavera. Eu caminhava por uma trilha deserta rumo a uma estação de esqui que já havia encerrado a temporada de inverno, mas o parque ao redor ainda não estava aberto para as visitas de verão. Ao meu lado estava Henning, um engenheiro alemão que, assim como eu, estava em Ushuaia para estudar espanhol. Em certo momento, após uma curva, avistei uma mancha branca e marrom alguns metros adiante.

— Aquilo é neve? — perguntei, empolgado.

Henning deu risada.

— Aquilo é um resto de neve suja que está derretendo.

Tomei aquilo como um “sim” e corri, completamente fascinado, até aquele metro quadrado branco, sujo de terra. Henning, acostumado com neve tanto quanto eu estou acostumado com trânsito, gargalhava, enquanto tirava uma foto minha. Seguimos pela trilha até que ela desapareceu em meio a uma floresta de árvores secas… e entendi porque Henning ria: quilômetros e quilômetros de neve branca e fofa cobriam a montanha até a altura dos joelhos. 

Éramos nós, o silêncio e nenhum outro ser.

Henning estava quase sem voz, tomando antibióticos por uma infecção na garganta e grandes goles de conhaque com mel “que ajudavam a esquentar e a melhorar”.  Entre uma palavra e outra que buscava no pequeno dicionário em sua mochila, Henning me contava sobre sua vida em Köln, sobre sua deficiência na mão esquerda e sobre seu pai, cujo nome traduzia-se como João Joaquim Cozinheiro. 

Foram horas e horas de conversa até percebermos que estávamos perdidos.

Começava a anoitecer, e as indicações da trilha, já escassas devido à neve, agora desapareciam por completo. Escolhemos não entrar em desespero. Com as meias molhadas e os pés congelando — “ahhh, nieve en los zapatos!” — guiamo-nos pela direção da neve derretida que corria rumo às luzes das casas ao pé da montanha.

Passaram-se nove horas desde a partida até a chegada. 

Ficamos muito amigos, Henning e eu. Seguimos viagem, junto a outros novos amigos, rumo ao Norte do país, passando pela Patagônia chilena e pelas paisagens nevadas mais incríveis que já vi. 

Dias depois, dissemos adeus. Nunca mais nos vimos.

É uma coisa engraçada, a neve. Nada mais é do que água, que bebemos, usamos, desperdiçamos todos os dias, mas basta mudar seu estado e mudamos nosso olhar. Há quem ache a coisa mais fascinante do mundo — “tudo branquinho, que lindo!” — há quem prefira a morte — “já teve que tirar a neve do carro pra ir trabalhar às sete da manhã?”; seja como for, o sentimento é passageiro: a neve derrete, e ficam as memórias, tenras ou traumáticas, de um momento que passou.


Onze anos depois viajei com uma amiga que via neve pela primeira vez.

— Aquilo é neve? — ela perguntou de dentro do carro, apontando para uma área branca ao pé da montanha.

Eu segurei a risada.

— Aquilo é um resto de neve suja que está derretendo.

Ela tomou aquilo como um “sim”. Paramos o carro e ela correu, completamente fascinada, até aquele metro quadrado branco, sujo de terra, sem saber que logo estaria em meio a quilômetros e quilômetros de neve branca e fofa que cobriam a montanha até a altura dos joelhos, criando um cenário fascinante que, assim como aquela viagem, duraria apenas mais alguns dias.

Foto: Acervo pessoal

Padrão
Cotidiano

Mr. Jones

Era uma tarde de setembro do ano 2000. Os Jogos Olímpicos de Sidney (do qual o Brasil sairia sem medalhas de ouro) estavam a poucos dias do início. Eu era um estudante de intercâmbio do Ensino Médio na Beacon Hill Technology High School, que hoje dá lugar a um condomínio de casas residenciais, e aguardava a aula seguinte no pátio com uma amiga brasileira. Ela sacou seu novíssimo discman da mochila, dividiu o fone de ouvido comigo e disse que queria ouvir só mais uma música, antes que a pilha acabasse. A música era Mr. Jones

O sucesso do Counting Crows logo se tornou minha música favorita e não demorou até que amigos começassem a associá-la a mim quando ela tocava no rádio, na balada ou no karaokê. “Vai lá cantar Mr. Jones!” Como é normalmente o caso, só depois de ouvir e cantar excessivamente a música comecei a prestar atenção na letra. A princípio, nada muito profundo ou original: dois amigos num bar, divagando sobre como seria ser famoso e, consequentemente, conquistar as mulheres que quisessem. 
 
Adam Duritz tinha vinte e poucos anos e não era um astro do rock quando escreveu a música, portanto frases como I wanna be a rock star ou When I look at the television I wanna see myself staring right back at me eram apenas sonhos que compartilhava com o baixista Marty Jones. Porém, quando seus sonhos se tornaram realidade, ideias como When everybody loves me, I will never be lonely provaram-se bastante equivocadas.
 
Conquistar um sonho de infância assim, tão diretamente, é para poucos, e deve ser assustador perceber que a realidade é bem diferente da sua percepção. Adam Duritz chegou a declarar que o suicídio de Kurt Cobain  um astro de idade e sonhos similares aos seus, que tirou a própria vida na mesma época em que Mr. Jones atingia o auge  afetou bastante sua maneira de perceber a carreira. Perceber o mundo, aliás, sempre foi uma questão complexa para Adam Duritz, que declarou sofrer de uma doença mental que o faz ter uma percepção distorcida da realidade, como se os acontecimentos não fossem reais, o que o faz ter dificuldade de se conectar com as pessoas. Como lidar com a ironia de ser famoso e conectar-se com mundo todo e ao mesmo tempo sentir-se desconectado desse mundo?
 
O escritor americano David Sedaris publicou há alguns anos um livro com trechos dos seus diários, que começam no início de sua vida adulta, quando era um estudante quase sempre sem dinheiro e envolvido com drogas, e chega até seus dias de sucesso, vivendo em Paris, viajando o mundo para divulgar seu trabalho. Há um momento mágico no livro, quando sua vida começa a seguir o caminho que ele sempre sonhou, seus livros publicados, suas peças lotadas: quando ele está exatamente onde sempre quis estar  e percebe isso. Mas o mundo não para nesse ponto alto e a vida segue. Quando antes ele precisava pedir carona e aplicar pequenos golpes para viajar pelo país, agora suas milhas dão upgrade para a classe executiva. No começo, ele diz, virava o rosto envergonhado para não encarar o julgamento dos passageiros da classe econômica que passavam pelo corredor, até que um dia viu-se enfurecido quando a Air France não pôde colocá-lo na primeira classe. “O que está acontecendo comigo?!”
 
Todos nós sonhamos coisas. Às vezes temos sucesso, às vezes não; às vezes aquilo era exatamente o que queríamos, às vezes não. Todos podemos revisitar e mudar nossos sonhos, e por isso é difícil imaginar ter de gritar seus sonhos antigos, suas crenças equivocadas, por elas estarem eternizadas na música de maior sucesso da sua banda. 
 
Há alguns anos, em uma versão acústica de Mr. Jones, Adam Duritz achou a solução para essa questão: ele simplesmente mudou a letra. 
 
De We all wanna be big stars, but we’ve got different reasons for that para …but then we get second thoughts about that.
 
De Believe in me para You should not believe in me.
 
De When everybody loves me, I will never be lonely para …it’s just about as fucked up as you can be.
 
E termina: Can’t you hear me? Cause I’m screaming. I did not go outside yesterday. Don’t wake me cause I was dreaming, and I might just stay inside again today. Mr. Jones and me… we don’t see each other much anymore.

Foto: http://www.mtv.com.br/artistas/xw63d0/counting-crows

Padrão
viagem

Turistas

Morar em São Paulo significa, entre muitas outras coisas, estar acostumado à poluição, ao trânsito e a quatro estações em um dia: você sai de casa com frio e chega ao trabalho derretendo; sai de casa de regata e dez minutos depois está na chuva. São Paulo é também a cidade que tem muito de tudo: muito restaurante, muito espetáculo, muita gente, muita enchente. Só o que São Paulo não tem muito são turistas. 

Costumo ouvir que os europeus são rudes com turistas, o que sempre me pareceu uma grande injustiça. “Eles sustentam a cidade! Viajam 30 horas só pra ver um quadro minúsculo ou um prédio velho, como assim não gostam deles?!”, bradava. Até que cheguei à Europa.

Basta visitar qualquer cidade turística para perceber que os invasores estão por toda parte, ocupando calçadas, atrapalhando filas, passando vergonha para tirar fotos e amontoando-se em restaurantes considerados cinco estrelas pelo Trip Advisor

Florença, por exemplo, é uma verdadeira cidade cenográfica: lotada de construções fascinantes e pessoas que não moram ali. Um jovem fiorentino abre a porta de casa e é atropelado por um grupo de chineses com paus de selfie; ele consegue chegar até a esquina, mas é freado por uma família americana de bermuda que toma sorvete (e a calçada): “Oh meu Deus! Este não é o sorvete mais delicioso que você já tomou em toda sua vida, Josh?” O jovem tenta atravessar a rua estreita, mas um jovem casal de mochileiros dinamarqueses que está cruzando a Europa Ocidental a pé com um filho no colo e outro no ombro pede passagem. Como não odiá-los?

Ser turista é também deixar de lado algumas convenções sociais básicas, como não assistir a um espetáculo de música clássica com uma caixa de liquidificador no meio das pernas ou não gritar em igrejas. É também extrapolar todos os limites físicos a fim de aproveitar ao máximo cada segundo longe dos filhos, como fazia Silmara, na fila da Galleria dell’Accademia, com aqueles que deduzi ser sua irmã e seus sobrinhos. 

— Essa cidade é maravilhosa! Além do quê, tudo nasceu aqui. A arte nasceu onde? Em Firenze. Dante Alighieri? Firenze! Aquele outro famoso, gênio, como ele chama…?

— Galileu?

— Não, o outro.

— Leonardo da Vinci?

— Isso! Firenze também! Que lugar! Mas ainda bem que eu não trouxe os meninos. Alberto disse ontem que tava sofrendo lá, que eles não param de discutir. Ah, mas é bom, também, sabe? Assim aprende.

— E a perna, tia, melhorou?

— Ah, eu nem sinto mais. De manhã eu tomo um Tandrilax e já saio pra rua. Tô igual nova.

Os meios de transporte também são ótimos locais para observar turistas em seu habitat natural: o estrangeiro. Enquanto um casal de coreanos tenta descobrir como validar o tíquete do trem, dois argentinos debatem se é mesmo necessário validá-lo, e duas inglesas discutem qual o melhor nome italiano.

— Eu gosto de Lucca.

— Eu gosto de Giulia com G. Adoro como soa diferente de Julia. (Oi?)

O avião é outro ambiente ideal para análises e julgamentos. O A330-900 Neo oferece a decolagem mais silenciosa do mundo, mas nem a Airbus, fabricante da aeronave, nem a Rolls Royce, fabricante das turbinas, contavam com Edneia e Jéssica, na fileira 22, que desafiavam a paz a 10.000 metros de altitude. 

— Olha que dia lindo, Jéssica! Céu de brigadeiro, mesmo! — exclama Edneia, do alto dos seus 60 anos, com um forte sotaque carioca. — O céu se mistura com o mar, olha que lindo! E ali embaixo eu vejo a praia.

— Que praia, Edneia, aquilo não é praia, você tá se confundindo — contraria Jéssica, a mesma idade, o mesmo sotaque. 

— Mas você é foda com P-H, hein, Jéssica? E eu lá não sei reconhecer a praia? Parece que é a primeira vez que eu venho aqui — devolve Edneia, indignada. — Tem sempre que contrariar! Por isso eu nunca mais vou morar com ninguém. Ah, não tenho mais paciência.

— Ah, eu também não. Até se eu for pra um asilo, vou pagar pra não ter ninguém me enchendo o saco.

O avião avança poucas centenas de milhas. — Olha ali fora os carneirinhos! — continua Jéssica. 

— Que diabo de carneirinhos?

— Ah, Jéssica, as nuvens, que parecem uns carneirinhos. Mas tudo que eu falo você implica? Parece que nunca foi criança. Nunca contou carneirinho? 

— Claro que fui criança, mas você é criança demais. Um pouco débil, até. 

— Ah, Jéssica, vai cagar no mato sem papel!

Será que são um casal? 

Começa uma turbulência leve — e eu adoro turbulências. Em um voo diurno de nove horas, a perspectiva de umas bebidas caindo, um carrinho desgovernado, um passageiro em pânico — qualquer situação que tire o tédio! — é bem-vinda. Mas Edneia interrompia o momento com suas teorias aeronáuticas.

— É que a gente tá em cima do mar, aí balança mesmo. Mas o piloto é bom, ele tá desviando a rota um pouquinho pra não balançar tanto. Assim que a gente chegar em Mossoró, que já é terra, aí para, você vai ver. 

— Como você sabe disso, Edneia?

— É só olhar no mapa, Jessica, olha aí. Não tá acreditando? E, também, a gente tá em cima da asa, então balança mais porque qualquer lado que mexe, a asa pesa.

— Ih, preciso pegar meu remédio, mas tá na bolsa ali em cima.

— Não pode levantar agora, Jessica, não tá vendo o aviso do cinto?

— E por acaso eu falei que vou pegar AGORA? Eu só falei que preciso pegar, só isso. Eu sigo as regras.

Edneia ri. — Tá bom, Jessica. Logo você? Conta outra!

— As de segurança eu sigo, sim!

A turbulência termina. Elas não.

— Tava pensando aqui, Edneia, esse roteiro que a gente fez foi um caminho meio merda, né? A gente foi de Madri pra Copenhague, pra Hamburgo, pra Roma, pra Lisboa… Olha quanta volta. E eu achei os alemães tão grossos! Só porque parei ali um instantinho já ficavam: “vai, anda, tem fila, não pode parar!”

— Hein? O que você falou?

— Os alemães, ali em Hamburgo.

— O que que foi, Jessica?

— Mas que saco, tá surda?

— Não tá vendo que eu tô escutando o filme, Jéssica?! Aproveita pra ver um filme você também. Ainda tem três horas de voo!

— E eu lá tenho paciência pra ver filme? Na ida assisti 007. Achei tão babaca.

— Ah, isso é verdade, tem razão. 

Penso em também assistir a um filme, mas a realidade é interessante demais para que eu busque a ficção.

Quando enfim pousamos, as duas aplaudiram o brilhantismo do piloto, apanharam suas malas e partiram, uma para cada lado, em direção à vida real.

Nunca vou saber a relação entre as duas — seriam irmãs? amigas de infância? colegas de viagem? — mas esta é uma das belezas de viajar: sejam lugares, sejam pessoas, há sempre muito mais ali do que podemos absorver. A gente revela o que quer e capta o que consegue. O resto a gente inventa.


Quando estive em Paris há alguns anos, tentei ao máximo não cometer os dois piores crimes: falar diretamente em inglês com um atendente e parecer um turista. Comentei com meu anfitrião todas as minhas técnicas para me camuflar em meio aos parisienses e não ser alvo de batedores de carteiras e golpistas em geral — como recomendam as placas e sinais sonoros espalhados pelos pontos turísticos —, mas ele disse que meu esforço era em vão:

— Não dá pra disfarçar: os turistas caminham apreciando a cidade. Pra vocês, tudo é lindo.

Talvez isso não seja assim tão terrível.

Foto: Acervo pessoal

Padrão
Cotidiano

Ovo

Atualmente – e já há alguns anos, na verdade – fazer uma atividade cultural em São Paulo requer um nível considerável de planejamento e, muitas vezes, uma escolha entre divertir-se ou pagar a mensalidade do plano de saúde. Quando soube que o Cirque du Soleil estaria em São Paulo novamente, não pensei duas vezes antes de ligar para minha amiga de aventuras circenses, Zandra. “Venda seu carro. Vamos ao circo.”

O valor do ingresso, como de costume, era o suficiente para alimentar uma família de refugiados por cinco dias. Tudo bem, o ser humano vive semanas sem comida, já o Cirque du Soleil vem ao Brasil uma vez a cada dois anos, quando muito.

Para economizarmos algumas centenas de reais da taxa de conveniência e podermos comprar uma pipoca mini, resolvemos adquirir os ingressos diretamente na bilheteria. O conceito da taxa de conveniência, aliás, permanece um mistério para mim. Imprima seu ingresso com seu papel e tinta e sem incomodar nossos funcionários e pague apenas alguns milhares por isso.

O ponto de venda, assim como agências bancárias e supermercados, dispõe de três vezes mais caixas fechados do que abertos, com o único objetivo de gerar uma fila e fazer você pensar: por que não paguei a taxa de conveniência?

No guichê, uma senhora de cachecol e seu marido ficam decepcionados por não haver mais ingressos para o dia 8, no setor VIP. “Pode ser o setor premium, então”, resigna-se ela. “Senhora, dia 8 está completamente esgotado. Eu tenho pro dia 26, no setor 2, lateral” diz a atendente, inabalada. A senhora vira-se para o marido. “Ih, Mário, mas acho que dia 26 o Rogerinho não pode. Liga pra ele, vê se ele já vai ter voltado.” “Não tem mesmo nada dia 8?”, insiste ela, como se a atendente pudesse ter-se enganado e olhado os ingressos do show de Sandy & Júnior no lugar.

Um jovem casal se aproxima de um atendente alto e magro, que contava os segundos para sair dali e tomar um milkshake do Bobs. “Visão parcial? Mas o que isso quer dizer exatamente?”, pergunta o rapaz, refletindo se vale a pena investir dois meses de salário em um espetáculo parcial de circo. “Há uma coluna que pode interferir parcialmente na sua visão em alguns dos números.” Deve ser uma experiência interessante: você vê um acrobata jogando outro na maca russa, e deduz – mas nunca sabe ao certo – que ele foi pego pelo acrobata do outro lado.

Uma criança chora enquanto a mãe sai da fila para comprar um Baccio di Latte; outra volta com nuggets de frango do Burger King. Enquanto cada um na fila leva 30 minutos em frente ao atendente, frustrando-se com a indisponibilidade dos lugares desejados, Zandra e eu matamos o tempo discutindo nosso futuro. “Você sabe que em breve a gente não vai mais precisar pegar filas, né?”, revelo. Somos bem conectados no mundo circo e não tardará até que tenhamos convites para espetáculos do Cirque du Soleil em Las Vegas, Montreal e na China. Ingressos VIP, obviamente. Ela continua o devaneio: “Estarei trabalhando na Emirates, então a gente dá um pulo em Dubai depois segue pra China. Te falei que você vai estar na minha lista de closest friends para descontos nas passagens?” 

Nosso futuro é interrompido pela atendente de cabelos curtos e encaracolados, que por algum motivo inexplicável parece feliz de estar ali. Zandra e eu indicamos o dia, horário, setor e assentos. “A gente é muito eficiente”, nos gabamos, enquanto no guichê ao lado alguém perguntava se era possível dar zoom na tela para ver melhor o mapa de assentos do setor 1. “Se todo mundo fosse assim…”, comenta nossa atendente-cúmplice. Zandra pergunta se eles, os atendentes, conseguem assistir ao espetáculo. Ela confirma. “A gente se reveza para ver nos lugares que sobram”. Será que três visões parciais equivalem a uma completa?

No dia do espetáculo, o carro é estacionado longe o suficiente para fugir do caos ao sair, perto o suficiente de uma portaria para não sermos sequestrados, e longe o suficiente de uma árvore que pode cair caso chova. O ginásio está cheio. A garota ao meu lado PRECISA registrar tudo o que acontece com seu iPhone e enviar as fotos em tempo real para o seu namorado, com quem troca mensagens e emojis enquanto um acrobata russo equilibra-se em apenas uma mão numa estrutura metálica de dois metros de altura. 

E ali mesmo, sentado num ginásio de esportes que faz as vezes de picadeiro, cercado de vidas e histórias, todo entorno parece desaparecer. Não existe o antes, não existe o depois: existe o agora, onde homens e mulheres de todas as partes do globo unem-se para combinar a técnica mais refinada com luzes, e cores, e sons, e texturas, em movimentos quase sobre-humanos, com um único e fundamental objetivo: arrebatar nossos sentidos com a surpreendente beleza que o ser humano ainda é capaz de gerar.

Foto: Divulgação Cirque du Soleil

Padrão
Cotidiano

Terça-feira

É um daqueles dias em que você decide que tudo bem almoçar um Mc Donald’s em plena terça-feira, com direito a batata grande e nuggets de seis com molho caipira, como você fazia na infância. Talvez até um sorvete. Não tem nada de errado com a sua manhã, mas também nada parece muito certo. Você foi resolver uma dessas burocracias da vida adulta e caminha por ruas que não costuma caminhar, onde pessoas parecem viver vidas reais — de alguma forma, mais reais que a sua. Pelo menos é uma quebra na sua rotina, e o dia está bonito, então você decide aproveitá-lo, nem que seja comendo um Mc Donald’s naquela loja que era o refúgio do “cheeseburger a um real toda quarta” na época do cursinho. Você lembra da loja maior do que era, como de costume acontece quando voltamos aos lugares do passado. Pensa nos amigos que dividiram aquelas mesas com você: cada um hoje em um lugar da vida e do mundo. Os sanduíches não são mais tão simples como eram naquela época e você decide testar uma das novidades do cardápio, acompanhado do nuggets de seis com molho caipira em que você está pensando desde que pegou o carro e decidiu que era um daqueles dias que tudo bem bem almoçar no Mc Donald’s em plena terça-feira. Enquanto aguarda seu pedido, você observa o entra e sai da loja, a gerente que destrava um caixa, a moça da limpeza que tira o lixo com um sorriso no rosto e um headset no ouvido. Uma mãe liga para o filho e exige que ele coma alguma coisa antes de ir fazer a prova e que ele mande uma mensagem para o pai. Você ainda não se decidiu sobre o sorvete e decide decidir depois. Você apanha sua bandeja, seus guardanapos e senta-se no balcão. Mal começa a molhar a batata no ketchup quando um garotinho se aproxima. Você está num banco alto e por isso o garotinho de cabelos descoloridos parece ainda menor e mais indefeso quando pede para você comprar um lanche. Por algum motivo você já sabia que isso iria acontecer e não pensa duas vezes antes de dizer que sim. Você pergunta qual sanduíche ele quer e ele aponta para o cartaz da promoção 2 por 1. Você desce do balcão, vai com ele até o caixa e acrescenta uma batata e uma coca-cola. A atendente sorri e pergunta o seu nome para anotar no pedido. Você sorri e pergunta o nome dele.

— Irã.
 
Irã como o enorme país do Oriente Médio, como o lar das civilizações mais antigas do mundo, como a terra cheia de riquezas sob a superfície e de conflitos sobre ela. Irã.

Ele aguarda seu lanche enquanto você volta para o balcão e come um nugget. A atendente sorridente entrega a bandeja e ele senta-se na mesa à sua frente, te agradece com um joinha e abre o sanduíche. Você pensa em ir sentar-se com ele, mas pensa que talvez seja invasivo; pensa em chamá-lo para sentar-se com você, mas de repente o oceano de distância entre vocês parece intransponível. Você pensa que não saberia o que dizer ou o que fazer, pensa que alguns minutos à mesma mesa não seriam suficientes para conectar o seu continente e o dele, e decide continuar ali, comendo seu sanduíche enquanto ele come o dele. Você pensa que pode pelo menos comprar um sorvete para ele quando for comprar o seu — ele certamente não espera por isso e ficará feliz. Mas antes de você terminar suas batatas ele já terminou as dele. Ele se levanta, com o sanduíche e a coca-cola ainda em mãos, te agradece novamente e sai pela porta que entrou, desaparecendo na avenida. Você termina o sanduíche, o nugget, a batata; joga as embalagens no lixo que a moça sorridente acabou de limpar e parte. Você passa pelo caixa em direção à saída e já não quer mais tomar um sorvete. Não tem nada de errado com a sua tarde, mas também nada parece muito certo.

Foto: https://www.meioemensagem.com.br/home/ultimas-noticias/2019/01/16/mcdonalds-perde-uso-exclusivo-da-marca-big-mac-na-europa.html

Padrão
Cotidiano

Permanente

Quando estava na terceira série, recebi a lista de materiais para o ano letivo e, em meio a réguas de acrílico, lápis-de-cor e cadernos ¼ capa dura de 48 folhas, havia um par de itens que me deixou muito empolgado: canetas. 

Minha diminuta vida acadêmica até então incluía apenas escritos com lápis HB, que ofereciam a acolhedora propriedade de poderem ser apagados a bel-prazer a qualquer risco acidental ou tigela com j. Mas agora as coisas seriam diferentes! Os erros em canetas Faber-Castell azul e verde estariam lá para sempre, talvez riscados, talvez com alguma correção tosca, mas sempre visíveis. Permanentes. 
 
À parte dos dentes de leite (“quebrou, mas tudo bem, depois nasce outro!”) não me lembro de outra situação na infância com essa divisão tão clara de “antes era mentirinha, agora tá valendo!”. Na vida adulta, então, nem se fala.
 
Na faculdade, fui uma das últimas turmas a ter aula de montagem com negativos de cinema. “A relação com as decisões é diferente”, dizia a professora. “Uma vez que você cortou o negativo, não tem volta. Você pode colar de novo, mas já não é a mesma coisa.” Hoje você vai e vem na timeline, cortando livremente, a um Ctrl+Z de qualquer conserto. Não é preciso refletir antes de agir.
 
Fico imaginando quão diferente era o processo dos escritores que datilografavam em máquinas de escrever, cada letra perpetuamente marcada na folha, fosse ela para o texto final ou para o cesto de lixo.
 
Não era diferente com as fotografias. Os passeios de escola eram acompanhados por um filme de 12 poses; um aniversário, de 24; um fim de semana na praia, de 36. Os registros tinham de ser pensados, refletidos. Havia limitações: o número de poses, o valor da revelação; e ainda era necessário esperar — algumas horas, alguns dias — para ver a imagem final: tudo muito diferente das sete opções de foto que tiramos do grupo hoje em dia, que rodam pelos grupos de WhatsApp por algumas horas e depois desaparecem num buraco negro, como diria minha mãe. Queremos tanto registrar o momento para que ele dure para sempre, mas depois raramente voltamos a ele: basta a (falsa) sensação de que ele é eterno, de que pode ser vivido depois, se eu quiser — mesmo que eu provavelmente não vá querer. 
 
Tudo hoje parece ser feito para ser reversível. O permanente assusta: seja um emprego, um relacionamento, uma moradia. “Mas eu vou ficar aqui PRA SEMPRE!? E se aparecer uma opção melhor?” Cada vez menos nos preparamos para qualquer tipo de para sempre, mas, ao mesmo tempo, o incerto e o imprevisível também não nos acolhem. Exigimos tudo: liberdade, opções, mas também algo sólido em que nos apoiar, algo que sempre esteja lá — e meras tatuagens não dão conta do recado.
 
Outro dia fui visitar uma amiga de infância que estava prestes a ter um filho — uma das poucas coisas verdadeiramente permanentes dos tempos atuais. 
 
— Como você conseguiu continuar amigo dela até hoje? — perguntou minha sobrinha adolescente. 
 
A resposta não veio imediatamente. Como, afinal, foi possível manter amizades por 20, 30 anos, grande parte deles sem Facebook, WhatsApp ou qualquer rede social que (supostamente) nos mantivesse conectados? 
 
Em termos práticos, respondi que foi me lembrando de aniversários todo ano (às vezes anotando na agenda física), ligando para dar Feliz Natal, criando eventos (reais) para reunir as pessoas. Mas por trás disso esteve sempre algo mais profundo: a vontade de manter as amizades vivas, a noção de que a quantidade de bons amigos (ao contrário do que podem dizer likes e followers) é limitada como um filme de 12 poses. Era mais difícil encontrar e reencontrar pessoas, por isso sempre foi fundamental mantê-las no nosso convívio e não descartá-las como uma foto desfocada do jantar passado.
 
Com tantas opções à disposição, nunca foi tão fácil trocar: trocar de amigo, de emprego, de país, de amante. Para que consertar a sola do sapato se eu posso comprar um novo? O para sempre deu lugar ao eterno enquanto dure; o praticar a lápis deu lugar a rabiscos direto a caneta, com um pote de liquid paper sempre a mão. E nessa longa trilha entre a segurança do permanente e a leveza do efêmero, caminhamos cautelosos (ou não), cientes (ou não) do abismo do vazio a poucos metros de cada passo.
 

Foto: Acervo pessoal

Padrão
Cotidiano, viagem

Um dia na história contemporânea

Esta semana tive de ir ao consulado italiano solicitar a emissão de um novo passaporte. Não é primeira tentativa. Ano passado estive no mesmo local, porém um registro desatualizado de endereço me fez voltar ao final da fila e aguardar por um novo agendamento – meses depois.

Sabendo que o local não permite o uso de celulares, vou munido de um livro – Sapiens – que leva o ousado (e acertado) subtítulo de Uma Breve História da Humanidade. Apanho minha senha – 78 – e tomo assento em meio a uma miríade de descendentes de italianos com suas respectivas pastinhas, sonhos e medos. 
 
― As senhas para passaporte serão chamadas por voz, em grupos de dez ― informa o segurança.
 
Ponho-me a ler sobre os Homo sapiens caçadores-coletores de 50 mil anos atrás: como se organizavam, como se alimentavam e como nossa estrutura foi se adaptando agora que não precisamos mais fugir de leões ou sentir o cheiro da chuva. 
 
― Senhas 40 a 50 ― anuncia a voz, cerca de meia hora depois.
 
Faço uma rápida conta e percebo que passaria muito mais horas ali do que o previsto. Uma senhora ao meu lado, com a senha 81, também percebe e bufa, antes de voltar para sua leitura: Abílio – Determinado, Ambicioso, Polêmico.
 
Se por um lado o Homo sapiens é um ser extremamente adaptável que conseguiu dominar outras espécies e povoar toda a Terra, por outro ainda resta adaptar-se a um ambiente fechado, sem ar-condicionado e sem acesso à tecnologia. Observar pessoas em tais condições é como participar de um experimento sociológico: um grupo de Homo sapiens do mundo atual é teletransportado para um saguão em 1994, pré-internet móvel, sem ar-condicionado, sem televisão, apenas com uma máquina de foto instantânea e uma de salgadinhos, bolachas e bebidas, que aceita exclusivamente notas de dois e cinco reais, e são forçadas a esperar. 
 
― Senhas 50 a 60!
 
Alguns dormem, outros rabiscam num envelope, outros leem, outros ousam interagir com o conterrâneo ao lado, e outros – sobretudo crianças, mas não apenas – choram. Entreter duas crianças pequenas que aguardam há horas sem poder lançar mão de uma Peppa Pig ou uma Galinha Pintadinha é um desafio para o qual o Homo sapiens não teve tempo de se preparar. 
 
Uma moça com um rabo de cavalo, que fez sua cidadania em Assis, mas que passava mais tempo na Toscana, e que agora estava no Brasil, mas talvez se mudasse para Malta em março, pergunta à atendente onde registrar seu endereço.
 
― É que ela tem uma carreira muito internacional ― explica o marido, com sotaque italiano.
 
A funcionária dá as instruções.
 
― Seu italiano é muito bom! ― diz ele.
 
― É que eu sou italiana ― diz ela.
 
― Senhas 60 a 70!
 
Mais um grupo sobe. Sinto fome, mas não posso caçar, nem coletar, nem comprar um Fandangos na maquininha porque usei minha última nota de 5 reais para comprar uma água. O consulado fecha em cinco minutos e, se sair, não posso voltar. Bebo água – dizem que inibe o apetite.
 
Volto ao livro e descubro que é difícil saber ao certo como viviam as sociedades de 40 mil anos atrás. Enquanto alguns fósseis encontrados indicam grupos que sofreram mortes violentas, outras regiões parecem revelar fósseis mais pacíficos. Começo a imaginar o quanto levaria para que esse grupo no saguão em 1994 começasse a guerrear por um assento, uma senha mais baixa, um pacote de Oreo. “O calor e o tédio podem levar o homem a loucura”, divago.
 
― Senhas 70 a 80!
 
Enfim! Subo ao segundo andar e aguardo ser chamado. Uma senhora de vestido azul suplica a um funcionário de cavanhaque: 
 
― Moço, faz vinte anos que estou tentando tirar esse documento! Não é possível que este comprovante de endereço não sirva. Ele é válido em qualquer lugar do Brasil!
 
― Mas aqui é a Itália. 
 
Um rapaz de óculos entrega os documentos de forma organizada a uma funcionária de longos cabelos loiros.
 
― Essa hora no fim do expediente é sempre melhor. Os mais atrapalhados sempre vêm cedinho ― conta ela.
 
Esboço um sorriso ao pensar na sua inocência em achar que conseguimos ESCOLHER nossos horários. Você passa dias tentando ligar para o número de agendamento. Alguém atende. Você abre um vinho para celebrar.
 
― Tenho disponível dia 25, às 10h, pode ser?
 
― Tá ótimo! É o casamento da minha irmã, mas ela vai entender. Ela arranja outro padrinho e, se der, ainda chego para a festa!
 
― Senha 78!
 
Vou até a mesa indicada e saco meus documentos com aquela tensão típica que só autoridades internacionais são capazes de elicitar.
 
― Esta foto não deveria estar colada. E esta assinatura deveria ter sido feita na minha frente ― diz o funcionário com a naturalidade de quem pede um pão de queijo na padaria.
 
― Eu tenho outras fotos! Eu tenho um formulário em branco! Eu te dou um abraço! Não me manda embora!
 
Ele diz que está tudo bem, confere os documentos, pede novas assinaturas. 
 
― Você precisa viajar nos próximos 40 dias?
 
― Infelizmente não.
 
Ele pega meu passaporte atual e coloca um carimbo de anulado em cada uma das páginas vazias. 
 
STOMP. STOMP. STOMP. STOMP. Um visto. STOMP. STOMP. STOMP.
 
“Preciso viajar mais”, penso.
 
Enfim, ele solicita o cartão para pagamento.
 
O cartão não funciona.
 
Ele tenta outra vez, duas vezes, três vezes. Nada. Entrego outro cartão.
 
O cartão não funciona.
 
Por alguns instantes, sinto uma ponta de inveja dos caçadores-coletores, que não possuíam um sistema monetário, um cartão de crédito, um passaporte. E daí que vez ou outra morriam de frio ou eram devorados por roedores gigantes?
 
Transação aprovada!
 
O rapaz organizado pergunta à funcionária loira:
 
― Como será daqui a dez anos, na renovação do passaporte? O processo será o mesmo?
 
― Olha, passaporte você não renova, você emite um novo, mas não tenho a menor ideia como serão as coisas daqui a dez anos…
 
Saio com meu protocolo em mãos e com a mesma pergunta na cabeça: como será daqui a dez anos? O que o Homo sapiens terá destruído, desenvolvido ou desvendado até lá? Será que voltarei a este mesmo consulado em 2029? Será que meu passaporte terá mais carimbos? Quantas pessoas novas vou conhecer? Com quantas perderei contato? Só uma coisa é certa. Do alto dos meus 45 anos, vou olhar para minha foto atual e dizer:
 
― Nossa, eu ainda tinha cabelo!

Foto: Acervo pessoal

Padrão
Cotidiano, viagem

Terceiro ato

O ano que acaba hoje foi para muitos um ano intenso. Se não tanto, ao menos foi difícil ficar indiferente a ele. Em meio a acontecimentos que impactaram o país e o mundo, pessoas nasceram, morreram; quase 8 bilhões viveram seus dramas, sonhos, frustrações e conquistas individuais. Além das minhas próprias, pude acompanhar as de alguns à minha volta e de outros a distância, afinal, a mesma tecnologia que nos isola dos que estão ao lado, também nos aproxima dos que estão longe. 

Uma das bilhões de pessoas que viveu seus dramas, sonhos e frustrações em 2018 foi Christin. Embora tenha nascido no Canadá, um país onde nunca pisei e para onde muitos  amigos resolveram ir este ano, conheci Christin em Los Angeles há quase uma década. Morávamos no mesmo prédio e estudávamos na mesma escola, ainda que em anos e disciplinas diferentes. Rapidamente nos tornamos amigos, compartilhamos jantares mexicanos e conversas constantes na jacuzzi, onde ela me explicou, como uma boa canadense, que não usava a vaga de deficientes pois não sentia que precisava. 
 
Christin sofria de um problema cardíaco que havia paralisado seu lado direito, o que não a impedia de produzir filmes, namorar garotas, dirigir – e viver sem medo. Terminado o mestrado, voltei para o Brasil e, salvo por poucas atividades nas redes sociais, soube pouco de Christin até ano passado, quando a mensagem Hi friend! How’s life? surgiu no meu celular. Atualizamos nossas vidas: a minha envolvia essencialmente o mesmo trabalho há anos e aulas de circo; a dela, um casamento, um filho, um divórcio. 
 
Nos meses seguintes, voltamos a acompanhar a vida um do outro com fotos, mensagens de texto e áudios. Ela me falou sobre o processo de divórcio, que envolvia discussões sobre a guarda do filho, sobre sua vida profissional, sobre uma nova namorada, com quem esteve empolgada durante meses até que terminaram. Falamos sobre como tentamos o tempo todo estar no controle das nossas vidas e sobre como isso tudo é uma grande ilusão; como não temos controle de nada e como, ao reconhecer isso, abraçamos o descontrole como parte da vida e simplesmente vivemos.
 
Recentemente Christin confessou que se sentia sozinha em Sacramento, uma cidade que não lhe oferecia muitas oportunidades de trabalho, mas onde queria ficar para estar próxima ao filho. Brinquei que aquele era o fim do segundo ato de sua vida: o momento em que tudo dá errado para, logo em seguida, uma grande virada trazer um final feliz. Ela gostou da ideia. O que será o terceiro ato da minha vida? – refletiu.
 
Não muito depois ela me escreveu, empolgada, dizendo que dirigiu três horas de Sacramento a San José, para um encontro que havia sido fenomenal. Estava radiante, mas tentando não criar expectativas.
 
Uma semana depois descobri pelo Facebook que Christin estava em San José quando caiu, bateu a cabeça e morreu.

Foto: https://www.ef.com.br/ils/destinations/united-states/los-angeles/

Padrão
cinema

Personal Statement

“Nós escolhemos você!”, dizia a voz do outro lado da linha. 

Era novembro de 2008 – uma década atrás –, estava no trabalho e, menos de duas horas antes, estava em uma sala a 20 km dali, sendo entrevistado por seis pessoas que sentavam em semicírculo a minha volta e me bombardeavam com perguntas em inglês para a primeira edição da bolsa de MFA in Screenwriting oferecida pela CAPES/Fulbright.
 
Para chegar àquela sala, foram necessários uma infinidade de documentos e materiais, produzidos ao longo de algumas poucas semanas. Entre eles, meu Personal Statement  um texto que basicamente responde à pergunta: quem é esse cara?
 
Já estava seguro do brilhantismo da minha primeira versão – que para mim, ingenuamente, era a versão final – quando pedi alguns feedbacks, apenas para constatar a perfeição da mesma. Recebi o seguinte retorno: “Está correto, está tudo aqui, mas não acho que está dizendo quem você realmente é… Por que você não tenta ser mais honesto?” 
 
Então eu fui.
 
Eu morro de medo de ir ao cinema. Não, não estou falando de filmes de terror. Estou falando de filmes em geral.
 
Esse era eu, uns 12 anos atrás. Não tenho a menor ideia de onde esse medo sem noção possa ter surgido, mas por muitos anos ir ao cinema era sempre uma experiência aterrorizante. Até que Titanic chegou aos cinemas e eu não queria ser “o cara que não viu Titanic”. Então lá fui eu enfrentar meu terror por três horas seguidas… e não é que eu gostei? Na semana seguinte, me forcei a ir ao cinema de novo. E de novo. Até que de repente eu era um aficionado por filmes, vendo quatro por semana, com um quarto lotado de pôsteres.
 
Eu não posso dizer, porém, que James Cameron é o responsável pela minha paixão por filmes. Desde muito pequeno eu gostava de contar histórias  é só perguntar para qualquer vizinho que recebia meus livrinhos caseiros aos cinco anos de idade. Eu também não mandava mal na escola, e até ganhei alguns concursos de redação que me deram uma bolsa de estudos na oitava série, mas ainda não via nada demais nisso. Eu gostava de números. Meu negócio era a Matemática. 
 
Aos 16 anos, uma vontade repentina de conhecer outras culturas me levou à Austrália, onde passei seis meses do Ensino Médio. Não é de se surpreender que o inglês foi apenas uma das coisas (talvez até a menor delas) que eu aprendi. Além das experiências incríveis que eu trouxe para casa após viver sozinho em um país desconhecido, havia também um diário que me forcei a escrever todos os dias: mais uma vez, contar histórias era parte da minha rotina e eu nem tinha percebido.
 
Ao voltar, já era hora de decidir “o que você vai ser quando crescer”. Meu amor por números me puxava para a ciência, mas eu nunca me esquecia daquela sensação mágica que eu tinha ao ver um filme que eu gostava. Aquela sensação de “eu quero fazer parte disso”, de “como é possível alguém fazer uma sacola plástica parecer engraçada e poética”?  Então eu percebi que a minha decisão já havia sido feita há muito tempo: eu queria ser um contador de histórias. Eu queria ser um cineasta.
 
Uma ajudinha de uma boa escola de cinema não cairia mal, então dediquei um ano inteiro aos estudos para entrar na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. E em 5 de fevereiro de 2003, meu nome estava entre os 35 futuros cineastas.
 
Ao chegar lá, uma sensação de “é só isso?!” tomou conta de mim. Talvez fosse a alta expectativa, mas a faculdade não foi exatamente o que eu esperava. Não que eu não tenha aproveitado  eu certamente aprendi muito durante as produções acadêmicas, aulas de história e trocas com os colegas  mas logo percebi que ainda havia um longo caminho até alcançar aquela sensação de preenchimento que eu tanto buscava. Foquei meus estudos em Roteiro, e embora eu tenha explorado outros campos, fazendo algumas eletivas em Astronomia e Estatística, a ciência agora tinha um papel secundário na minha vida.
 
Terminada a faculdade, com meu primeiro roteiro de longa em mãos, cheguei à Paris Filmes. Trabalhar numa empresa de distribuição logo após a faculdade foi uma experiência interessante  pra dizer o mínimo. Aprendi, de uma vez por todas, que fazer filmes é fazer parte de uma cadeia econômica: pode ser arte, pode ser transgressão, mas se você quer que seu filme seja visto por milhares de pessoas, ele eventualmente vai fazer parte dessa cadeia, onde valores como bom e ruim são definitivamente diferentes daqueles que a gente aprende na faculdade.
 
Ali eu aprendi muito sobre o mercado de cinema. Ainda estou aprendendo. Aprendi, por exemplo, que o número de brasileiros que assistem a filmes nacionais está caindo, basicamente porque não temos um número suficiente de bons contadores de histórias. Então percebi que se eu queria mudar isso, eu precisava continuar estudando. Foi aí que apareceu a UCLA Extension. Foi durante esses 18 meses de aulas online que me dei conta de quão profunda era a toca do coelho. Também foi lá que terminei meu segundo roteiro e que aprendi que é necessária uma dose gigante de humildade para sobreviver no mundo da escrita, já que seu trabalho vai estar sempre sujeito a críticas. Vi anos e anos de estudo por trás dos filmes mais simples. Vi um método, e isso me fascinou ainda mais. Contar histórias não era apenas uma arte: era uma ciência.
 
Olhando para trás, percebo que ainda há muito que não sei, mas o que sei é que quero continuar aprendendo; quero conhecer o mundo para ter o que escrever; sair do Kansas nem que seja para descobrir  de novo  que “there’s no place like home”. Sei que escrever me faz sentir livre; me torna quem eu quiser, onde eu quiser, quando eu quiser. Também sei que as histórias têm o poder de tocar as pessoas, de influenciá-las; que o contador de histórias tem o poder de dominar, e que seu público são apenas pessoas que se permitem dominar. 
 
E pensando assim, como é possível que alguém não tenha medo de cinema?
 

Foto: http://www.theodysseyonline.com/things-people-who-get-scarred-by-scary-movies-know-to-be-true

Padrão