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O jantar

Fazia anos que não saíam para jantar.
Naquela noite, ele quase se esqueceu das reservas que ganhara de aniversário. Já estava na cozinha, prestes a assar uma batata quando ela veio relembrá-lo.
Chegaram ao restaurante assim que abriu, às oito em ponto. Quem sabe não voltariam a tempo da novela? Sentaram-se no mezanino, a uma distância segura do piano. Aceitaram o couvert enquanto olhavam o cardápio.
– Tire o chapéu. É feio usar chapéu na mesa.
Ele olha ao redor, despreocupado.
– Não tem quase ninguém aqui.
Ele volta-se para o cardápio.
– Acho que vou pedir uma salada caprese de entrada.
– Não come tanto pão! Depois não aguenta a comida e fica empurrando pra mim – ela replica, enquanto ele espalha mais ricota temperada no pão integral.
Ela decide pedir uma taça de vinho.
– É suave? – ele pergunta ao garçom.
– Esse que ela pediu é mais seco.
Ele não gosta. Ela não liga.
– Não importa, o vinho é pra mim, pode trazer.
Chega o vinho, chega a salada. Ele encara com bom-humor os quatro tomates pelados e o manjericão frito.
– …E isso custa trinta reais? Ainda bem que eu não tô pagando.
– Mas precisa sempre falar do preço da comida?
– Eu tô brincando!
Ele põe um quarto do tomate no prato dela; ela come, contrariada. Ele continua a investigar os elementos perdidos em sua salada.
– Ah, isso é uma mussarela de búfala. Achei que era um ovo de codorna.
– E você não sabe o que é “caprese”? O risoto que você pediu é a mesma coisa: tomate, mussarela e manjericão.
– Ah… Não vejo a hora de poder comer carne de novo.
Ele coloca mais tomate no prato dela.
– Eu não quero.
Ele come o pão. E ela come o tomate. O garçom se aproxima com duas xícaras.
– Nós não pedimos isso – ela informa.
– É creme de legumes. Presente do chefe.
– Ah, então tudo bem – anima-se ele, antes de queimar a língua com a sopa quente.
Discretamente, ele tenta molhar o pão na xícara.
– Isso é feio. Nem ouse!
Ele ousa.
A luz diminui, o piano começa a tocar, os garçons começam a cantar.
– Você gosta desse tipo de música? Porque eu não vejo muita graça – revela ele, como que se desculpasse. Ela aplaude, animada.
Chega o risoto dele; chega o torteloni dela. Eles comem em silêncio, tentando identificar a comida sob a meia-luz.
Ele coloca uma garfada de risoto no prato dela.
– Eu não quero. Falei pra não comer tanto pão.
– É só pra experimentar.
Ela cede.
– É bom.
O garçom traz um novo cesto de pão. Os olhos dele brilham. Ela se esforça para terminar o último tortelonni.
– Não quer experimentar? É uma delicia.
– Não, não, já estou cheio – responde ele, enquanto engole o ultimo pedaço de pão.
Ele empurra o prato de risoto em direção a ela, em uma derradeira tentativa de evitar o desperdício. Ela o empurra de volta:
– Já falei que eu não quero, mas que coisa! Mania de querer empurrar tudo pros outros!
O garçom retira os pratos e traz o cardápio de sobremesas. Eles demoram a se decidir. 
– Eu não aguento mais nada! – diz ele.
O garçom retorna:
– Decidiram?
– Sim – diz ela. – Vou querer um crème brulée.
– Sim, senhora.
– …Com duas colheres, por favor.
Após quarenta anos de casado, ele já não se surpreende.
– Falei pra não comer tanto pão…

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