Esboço em preto e branco e sombras cinzas de uma furadeira.
Cotidiano

Cidoca

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Não tenho a menor dúvida de que quando Jean-Paul Sartre disse “o inferno são os outros” ele se referia aos seus vizinhos. Não só isso: acho bastante provável que ele tenha viajado para o futuro, morado no meu prédio e conhecido a Dona Cida, para então voltar ao passado e chegar a tal conclusão.

Mudei para o meu apartamento poucos meses depois de o edifício ser entregue. Dona Cida já estava aqui, me aguardando no piso de baixo. Passadas poucas semanas, chamei alguns amigos em casa; não tardou até que batidas no teto anunciassem o incômodo do meu evento. Inocente, no dia seguinte deixei um bilhete no andar de baixo com um pedido de desculpas, o que Dona Cida recebeu como um convite para iniciar uma interação.

Nos anos seguintes, os golpes de vassoura deram lugar a – ou foram acrescidos de – chamadas pelo interfone, que eu, na tentativa de ser um bom vizinho, atendia pacientemente. “Não, Dona Cida, o cheiro químico não é daqui. “Não, não estou arrastando móveis.” “Não, não estava pulando, são 2h da manhã, eu estava dormindo.” Um dia derrubei um talher no chão, durante o almoço. Segundos depois, o interfone tocou. Não posso dizer, porém, que sou especial: Cidoca frequentemente grita a plenos pulmões ao vizinho de baixo “que não vale nada, jogando essa fumaça fedida no meu terraço, tenho que fechar tudo, que inferno!” ou ao vizinho do lado “que fica batendo na parede do quarto toda noite, que inferno!” O que será que fazem?

Durante a pandemia, a situação se agravou, e as manifestações de Dona Cida tornaram-se mais frequentes e intensas: portas batendo, interfonadas nove, dez vezes ao dia, gritos frequentes na janela, ao ponto de vizinhos do prédio da frente retrucarem gentilmente: “cala boca, sua velha louca!” Genuinamente preocupado, escrevi para o jovem síndico, Jotapê, na esperança de que algum contato de emergência fosse informado sobre o estado psicológico da tal senhora, uma vez que ela vive só. Ele prontamente se solidarizou e me informou que a filha de Dona Cida – que mora no prédio, vejam só! – já estava ciente. Disse também que outros vizinhos já ameaçaram chamar a polícia por conta dos distúrbios que Dona Cida causa e que ele mesmo já havia recebido diversas ameaças de que ela iria pessoalmente à sua porta se ele não silenciasse os vizinhos – os 378 vizinhos. Por ora, pediu paciência e empatia. Concedi.

Até que em um grande plot twist condominial, acordo com uma notificação dos advogados do prédio na minha caixa de e-mail, dizendo que “aos 12 de outubro de 2021 por volta das 02h00min., morador (a) de vossa unidade realizou conduta infratora à norma condominial vigente, posto que produziu barulho de forma excessiva, proveniente da utilização de aparelho sonoro ou similar, produtor de ruído, em horário destinado ao descanso, de forma a causar perturbação ao sossego da Comunidade Condominial.”

O barulho em questão: minha ducha higiênica.

Escrevi para Jotapê imediatamente dizendo que minha cordialidade havia chegado ao fim: “Tolero os rompantes de loucura da Dona Cida há mais de oito anos, tentando manter uma relação cordial em nome da boa vizinhança, mas se agora passamos a nos comunicar por advertências formais, assim será!” bradei, triunfante. Ele me ligou minutos depois, pedindo desculpas, dizendo que a administração se precipitara e que eu poderia desconsiderar a advertência. Esperançoso na humanidade, sugeriu colocar-nos em contato, Cida e eu, para que resolvêssemos a situação de forma cordial. “Somos todos moradores com boa instrução, educados e que sabem conviver em coletividade. Uma conversa é sempre a melhor saída, não é mesmo?”

E foi assim que comecei a receber os melhores e-mails da minha vida; verdadeiros manifestos literários, preciosos demais para não serem compartilhados; um acesso exclusivo a uma mente fascinante, inquieta e obcecada com o horário das duas da manhã – e com o “equip. que faz barulho:” a ducha higiênica.

“Você trouxe equips. na pandemia que liga fora de horários permitidos, e nem de dia poderia, que aqui é residencial, e há meses que liga tipo furadeira e tipo arrasta móveis. Não pego no sono antes das 2 h e tenho certeza que ninguém faz barulho, porque qdo você não está maior sossego, e durmo cedo, se bem que até 0:00 h tudo bem, mas cansada ter de esperar você dormir às 2 h todas as noites.”

Numa derradeira tentativa de ser um bom vizinho, substituí a famigerada ducha higiênica e as borrachas sob as parcas cadeiras de casa. Mas o mal já estava feito.

“De um tempo para cá você liga equips tipo furadeira e arrasta móveis, e agora modera e liga mais baixo, pois um dia bati no teto, e ligou mais forte, e não consegue arrastar móvel tão pesado, que achei que fosse, e ligava tipo furadeira mais comprido, e agora barulho mais curto, mas hoje 9 h me acordou e domingo nem é permitido ligar nada tipo reforma, que mais de ano já trouxe na pandemia, esses equips. Digo isso pois a visinha  me acorda 6 da manhã e deixa cachorro uivando e qdo para, você levanta e faz barulho.”

“Gostaria de parar de me tirar da sossego que de tempão pra cá trouxe esses barulhões que não consigo descansar a não ser na hora que dorme e acorda e não sou obrigada fazer seus horários, concorda? Gostaria de silêncio absoluto depois de 23 h que parece que dorme até 23 e levanta com barulhos até 2 h da manhã.”

Um ponto importante que vale ressaltar é que, quase sempre, já estou na cama ao redor da meia-noite.

Assunto: Implorando silêncio depois de meia noite e se possível já que perco horas dia seguinte segura até as 10H da manhã, pra começar barulho

Mensagem: Acho bom ficar quieto até 2 da nanhã. Deveria estar dormindo agora não fosse não me deixar pegar no sono com Barulho várias vezes só depois da meia noite. Não tenho culpa se só dorme 2 h da manhã desde que fique em silêncio absoluto e ainda tem coragem de se defender que só você vai dormir 2 h da manhã.”

Quando descobriu, pela assinatura do meu e-mail, que sou roteirista, passou a dar uma nova atribuição aos sons do meu encanamento.

“Trocou arrastação de cadeiras hiperprsadas todos os dias há meses ou até ano, por serra agora ? só pode ser ser algum equipamento,  que qdo liga controla barulho. Ninguém tem força para todo dia arrastar tantas cadeiras e nem precisa varrer todos os dias embaixo. Uma vez ou outro faxina até ia. Peça você para parar  p favor com essa serra, e retira esse equip de produtora até aqui é residencial. E o que derrubou agora que pareceu derrubar  o meu teto ?”

“Acho bom levar esse equipamento para produtora que trabalha e tipo furadeira com certeza não era do encanamento que deve ter levado. Trabalho aqui é com computador no máximo não trazer studio pra dentro que é residencial.”

“Daria pra ficar acordado quieto ou tá difícil. Todos os dias as 9 h já levanta fazendo esse e barulhão, que só é permitido reforma depois de só 11 h , e mesmo assim nunca termina quase ou mais de ano, que trouxe esse equip de produtora que trabalha, só pode ser e aqui não é comercial.”

“SilencioooooooooooooooooooooooooooooooSilênciooooooooooooooo… Agora você vai dormir e eu levantar pra ver se tomo chá para me acalmar, e como alguma coisa , que sono alimenta e até agora acordada por sua causa remexendo em coisas. Que alívio parece que agora vai roncar parou qquer barulho.”

É difícil não se solidarizar com alguém que sofre de maneira tão constante e que, justificadamente ou não, atribui esse sofrimento a mim. Mas também é impossível não apreciar a ironia de que eu sou possivelmente o melhor vizinho que Dona Cida poderia ter: ao contrário do que a biblioteca de e-mails pode sugerir, sou extremamente cuidadoso com ruídos, quase nunca recebo visitas e odeio qualquer dispositivo com volume alto; sou bastante paciente – do tipo que atende ligação de telemarketing e ouve a oferta até o fim antes de recusar – e nos primeiros cinco ou seis anos de convívio, até atendia o interfone quando ela ligava. “Não, Cida, não estou usando uma serra elétrica.”

No e-mail mais recente, ela decidiu que “você tem de morar em casa, e principalmente não fazer studio de roteiros, essa hora, aqui no residencial, e ficar pulando no apto tempo inteiro por duas horas me entrando nos pensamentos.”

Talvez Dona Cida seja um ser superior e esteja, de fato, ouvindo os ruídos do meu “studio de roteiros:” os pensamentos que batem nas paredes do meu cérebro, saltitam e me tiram o sono; que às vezes gritam e que, quando mais preciso, ficam em silêncio.

Uma coisa que temos em comum, Cida e eu, é que entramos nos pensamentos um do outro. Toda vez que sua porta bate ou que seus gritos ecoam pelo meu chão, tento visualizar o que ocorre três metros abaixo de mim. Sua casa é uma bagunça? Ou de uma limpeza doentia? É acumuladora? Usa pantufas e penhoar quando vai até o interfone? De que cor é o seu armário?

E é então que me levanto da cama, às duas da manhã, e corro para o computador, derrubando tudo pelo caminho, na esperança de que minha caixa de e-mail revele um pouco mais sobre o fascinante mundo de Cidoca. Refresh.

Foto: gartic.io

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