Cotidiano

Carros 2

Talvez ninguém mais se lembre, mas houve um tempo em que para ir a algum lugar de carro era preciso, de fato, saber o caminho. Google Maps, Waze e afins eram, no máximo, uma ideia futurista, e para chegar a algum lugar desconhecido era necessário checar um guia físico de ruas e seguir quadrantes ordenados por mais de trezentas páginas — como faziam os Incas.

Pouco antes de tirar minha habilitação, um pequeno trauma envolvendo uma discreta perseguição com um policial disfarçado de agente de trânsito pelas ruas de Osasco me tornou um verdadeiro ás dos guias de rua: me perder não era uma opção.

— Nossa casa está na página 248, quadrante B3. Para chegar à Av. Rebouças, siga para a página 179 — eu podia anunciar, de cor.

Já habilitado, tive de desenvolver temporariamente a habilidade de dirigir um Fiat Uno que sempre morria na mesma curva, voltando do cursinho. “É normal,” dizia meu pai. Porém, uma habilidade permanente adquirida desde os aventureiros tempos de autoescola foi a de fazer baliza. O terror da maioria dos novos motoristas sempre foi minha zona de conforto. Era ver aqueles cabos de vassoura fincados em latas de cimento e ter a certeza de que eu estava no controle. Os cabos de vassoura logo viraram faróis e para-choques, e lá estava eu colocando meu Picanto em qualquer buraco. Ah, a juventude!

Certa vez estacionei o carro em frente a uma escola onde teríamos um evento. Uma amiga chegou logo depois, um pouco tensa:

— Fi, acho que você não vai conseguir tirar seu carro. Tem dois carros esmagando você!

— Fui eu que coloquei ele lá — disse eu, com um sorriso maroto.

Anos depois, a caminho da aula de circo, encontro uma vaga perfeita em frente a uma padaria. Seguro de minhas habilidades balizadoras, emparelho meu carro ao lado de um Polo branco e engato a marcha à ré, na expectativa de encaixar meu Palio entre o Polo e uma Spin preta que já viu dias melhores. Longos minutos depois percebo que meu golpe de vista talvez tenha sido equivocado e que a vaga quiçá fosse mais apropriada a um Cinquecento… ou uma moto. Um funcionário da padaria se aproxima com o mesmo olhar preocupado da minha amiga anos antes.

— Ih, prenderam você, né? Peraí um instantinho que vou chamar o Gilmar pra—

— Não, não! — interrompo — Eu estou estacionando.

— Vixe…

Gilmar vem lá de dentro e espia enquanto eu giro o volante freneticamente. A essa altura, é melhor terminar de estacionar do que desistir, penso — nem que para isso eu precise abrir um pouco de espaço.

— Bate um pouco no da frente pra variar! — grita Gilmar, quem eu deduzo ser o dono da Spin.

Termino a empreitada com o carro ligeiramente na diagonal e desço sem encarar o grupo que se forma na padaria. Chego à aula já aquecido! Na próxima hora eu deveria focar em não despencar de um trapézio, mas minha preocupação é uma só: como é que eu vou tirar o carro dali?!

Volto para a cena do crime e a saga recomeça, movendo o carro um centímetro por vez, até que Gilmar finalmente sai da padaria, emputecido, e finalmente dá ré na sua Spin.

POR QUE ELE ESPEROU QUE EU VOLTASSE E MANOBRASSE O CARRO POR DEZESSETE MINUTOS PRA FAZER ISSO?!

Então me coloco no lugar de Gilmar: se um idiota sem noção de espaço viesse empurrar meu carro com pequenas batidinhas para estacionar o dele eu também iria querer vê-lo sofrer, torcendo até mesmo por uma direção mecânica e um ar-condicionado quebrado. Compadecido, abro o vidro na esperança de pedir desculpas e dizer que me responsabilizo por eventuais danos ao carro dele. Mas já é tarde. Gilmar já bateu a porta e voltou para a padaria, ocupado demais para ouvir minhas desculpas e entretido demais com seu mais novo hobby: me odiar.

Foto: Arquivo pessoal

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