Cotidiano

Discord

Recentemente, na agência onde trabalho, começamos a usar um programa de comunicação chamado Discord. Meu primeiro pensamento ao ver aquele logo com um robô feliz foi: “por que alguém daria esse nome justamente a um programa de comunicação?” Eu poderia ter investigado um pouco e resolvido esse mistério, mas não me importei o suficiente – confesso. Apelidei o famigerado de “discórdia” e segui a vida. Essa singela reflexão, porém, levou-me a outra um pouco mais profunda.

Há alguns anos, um casal de amigos veio jantar em casa (numa época em que isso era socialmente aceitável). Surgiu o assunto do sistema educacional brasileiro, sobre o qual ele, professor de Geografia, tinha fortes opiniões. Não posso dizer que as minhas opiniões eram fortes, mas eram, certamente, diferentes das dele. Porém, decidi me calar. Não nos víamos havia muito tempo, e só o que eu queria era conversar amenidades e beber um vinho. E assim foi.

Por uma grande casualidade, no dia seguinte, uma amiga em comum iria jantar na casa desse mesmo casal. E lá fui eu novamente. “Ou a gente não se vê nunca, ou se vê duas vezes no mesmo fim de semana! Que coisa, não?” Novamente, surgiu o assunto do sistema educacional brasileiro, dessa vez ainda mais inflamado do que na noite anterior. A amiga em comum – que também não os via há tempos e, portanto, poderia usar o mesmo argumento que eu – tinha uma visão distinta e resolveu expressá-la. Não foi uma briga. Não houve tensão. Ele tinha uma opinião. Ela discordava. O assunto foi debatido. Jantamos, tomamos vinho, aprendemos uns com os outros.

Foi então que eu percebi que estou desaprendendo a discordar. Não apenas eu: nós. Numa época de cancelamentos e lacrações, vamos nos tornando meros hospedeiros de ideias virais que precisam impreterivelmente contaminar o outro; polos negativos de ímãs que jamais conseguem se aproximar. Em meio a discursos inflamados de “somos todos iguais”, vamos perdendo a habilidade de lidar com o diferente.

No final de 2016, no dia seguinte à eleição em que Donald Trump venceu Hillary Clinton, a repórter Stephanie Foo entrevistou dois amigos, militares, para um breve segmento do podcast This American Life que concluía assim:

“Sentar com esses caras logo depois dessa eleição tão pesada e segregadora foi revigorante. Não a parte sobre uma possível guerra nuclear, mas a maneira como eles falavam um com o outro. Eles discordam em tudo, mas gostam demais um do outro. Eles trabalham muito bem juntos, fazem o que precisam fazer. Muitos dos eleitores de lados opostos não conversam o suficiente para perceber que, na verdade, poderiam se dar bem. Neste momento, em que ninguém parece ouvir ninguém com um ponto de vista diferente, em que um lado despreza o outro e acredita que ele vai destruir o país, foi um alívio assistir a uma discussão decorrer dessa forma, sem qualquer julgamento, raiva ou rancor, em que uma pessoa reconhecia continuamente a humanidade da outra. Depois deste último ano, a gente precisa muito disso.”

Foi há quase quatro anos, mas poderia ter sido ontem; foi nos EUA, mas poderia ter sido em qualquer lugar do mundo; foi sobre política, mas poderia ter sido sobre qualquer assunto.

Mas voltando ao Discord. Que nome incrível para um programa de comunicação!

Foto: discord.com

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4 comentários sobre “Discord

  1. Daniel disse:

    Muito boa essa reflexão tendo como partida o nome de um software de comunicação. Nos dias atuais estamos passando por uma reafirmação desesperada de que o mundo ainda é e sempre será binário. Felizmente não! Diante de qualquer fato, afirmação, situações, bandeiras ou nomes podemos refletir, discordar e discutir sobre o preto, o branco, os tons de cinza e as cores do arco-íris sem cancelar um ao outro!

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