Contos

Pão de miga

Fechou o laptop apressada: já eram quase oito da noite e ainda precisava comprar um presente se quisesse mesmo aparecer no aniversário – “não pega bem chegar de mão vazia”, dizia sua mãe –, agarrou a bolsa sobre a mesa do escritório, a chave do carro, e mal havia apanhado o celular quando recebeu uma notificação: um e-mail de trabalho. Bufou e respondeu enquanto caminhava até a saída, onde cruzou com Heitor, que perguntou se ela ia ao aniversário. “Vou ver”, ela disse. “Ah, você sempre fala isso e nunca vai”, ele respondeu. “É sério, eu vou ver”, devolveu sem tirar os olhos do celular e sem saber ainda se dizia a verdade, e chamou o elevador esbravejando algo para a tela.

Quando percebeu já estava em casa, no banho.

Relaxou.

Saiu do banho e abriu o armário, ainda de toalha. Lembrou que se esquecera de comprar o presente. Apanhou uma calça e uma blusa sem refletir muito e jogou-as sobre a cama. Pegou o celular e deitou ali do lado por um instante, pensando como faria com o presente.


Acordou.

Sua mente divagou até que pensou naquele dia corrido de trabalho – não sabia que seria o último, como poderia saber? – e no aniversário que não foi. É que estava tão cansada! Vivia cansada, refletiu. Agora já nem lembrava há quanto tempo não saía de casa. Que estação do ano estamos? Como eram divertidos os aniversários…

Pensou, ainda na cama, sobre as noites mal dormidas por causa do cliente insatisfeito, as mensagens de cobrança às onze da noite, os jantares cancelados por causa do trabalho. Por causa de alguém que sequer existe mais – pelo menos não no seu universo. Sentiu um misto de tristeza e alívio ao pensar nisso. Mais tristeza do que alívio, constatou, um tanto surpresa. Quantas vezes havia desejado que uma pessoa sumisse de sua vida, e agora que havia sumido, por que não se sentia feliz? Talvez tenha de fato morrido. Será?

Rolou as fotos e mensagens mecanicamente no celular como sempre fazia. Para que acompanhava tantos memes e notícias e exercícios e receitas e revoltas e mensagens motivacionais já não sabia mais: era apenas um ritual que havia incorporado sem perceber – como tantos outros – e que agora temia abandonar. O que mais poderiam-lhe tirar?

Tinha o dia inteiro pelo frente, mas não sabia como vivê-lo – nem se queria vivê-lo. De certa forma, as opções nunca foram tão abundantes. Pensou em estudar sueco – afinal, a escola de línguas estava com pacotes imperdíveis para aulas online! –, podia ser-lhe útil um dia para agradecer um Prêmio Nobel. Em que área mesmo? Lembrou que poderia aceitar o prêmio em inglês e desistiu. 

Tentou lembrar a última vez que havia tocado em alguém. Sabia que não havia se despedido de ninguém no último dia de trabalho, mas e antes disso? Teria sido um aperto de mão em uma reunião? Que triste. Um beijo? Não, isso fazia mais tempo. A última lembrança concreta era de esbarrar no entregador que devolvia-lhe o cartão, mas, não, aquilo não contava.

Pensou em levantar-se. Precisava tomar café da manhã. Ou já era hora do almoço? Que dia é hoje, mesmo? Poderia pedir um pão de miga na padaria ali do lado, mas mesmo assim teria que colocar uma roupa, escovar os cabelos, trocar os sapatos, esperar o elevador vazio, colocar a máscara, limpar a sacola, tomar outro banho… Sair de casa era tão animador antes. Um dia. Tiraram-lhe a vontade de sair. E também não tinha tanta fome assim. Um abacaxi congelado desde a última entrega do mercado duas semanas antes daria conta. Mais tarde poderia pedir um sushi, talvez. Ou não. Tanto faz.

Era o Nobel da Paz! Mas esse é na Noruega. Será que o app ensina norueguês?

Teve uma ideia.

Pegou o celular novamente e desviou-se um instante para fotos de um passado distante e lives e desafios sem sentido sobre seus gostos musicais e cinematográficos. A quem interessa?

Qual era a ideia, mesmo?

Largou o celular e voltou a dormir.


Acordou enrolada na toalha, os cabelos molhados – e agora o travesseiro também. Checou o celular: ainda dava tempo. Trocou a blusa amarrotada sobre a cama por uma mais colorida, maquiou-se mais depressa do que se achava capaz e saiu pela porta sem perceber – ou ligar – que o celular tinha ficado para trás.

Entrou no bar esticando o pescoço para encontrar os conhecidos e logo viu Heitor com uma bebida na mão, conversando com uma colega. Sorriu. Ele ficou surpreso ao vê-la. Surpreso e feliz. “Olha só, você veio!”, disse caminhando em sua direção.

Ela esperou que ele se aproximasse. “Me dá um abraço?”

Foto: “Morning Sun”, de Edward Hopper

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