Contos

Filhos

O conto a seguir pode ser acompanhado nas vozes dos atores Helena Fraga e André Pottes.

Helena Fraga
André Pottes

Você diz que não quer ter filhos. Não que você não goste de crianças, não é isso. Você inclusive passa bastante tempo com crianças, você acredita que elas podem mudar o mundo, mas você nunca quis ter crianças suas, pra cuidar 24 horas por dia. Sempre te disseram que isso mudaria um dia, “Ah, na sua idade eu também não queria ter filhos, mas depois todo mundo quer.”, mas você não é todo mundo: o tempo passou e você continuou não querendo ter filhos. E tudo bem. Aí ele aparece na sua vida, numa noite que já tinha quase acabado. Marcam um encontro perto da casa dele. Você chega antes. Ele chega uns minutos depois. Você o vê de costas, dá um tapinha em seu ombro, ele vira e sorri. Vocês tomam um café. Você não tinha expectativas – o que é raro, mas quando percebe já quer prolongar aquela noite. Torce pra que ele te chame pra subir, e ele chama. Você vai embora horas depois querendo vê-lo o mais breve possível. Vocês se veem no dia seguinte, e no outro, e no outro. Você achava que ele estava de passagem, mas ele puxa uma cadeira e fica por ali. Sem querer, entra na sua vida naquele mesmo fim de semana, com escova de dente e tudo. Vocês conversam hipoteticamente sobre a vida, sobre o futuro. Ele logo diz que quer ter filhos. E logo. Você diz que não pensa muito naquilo e deixa pra refletir depois, afinal não quer ser do tipo que já pensa em filhos e casamento e almoços de domingo no primeiro encontro. Mas os almoços de domingo logo viram o assunto, e fica decidido que seriam da família. A princípio ele não tem muito a ver com você, mas aos poucos aquilo tudo começa a fazer sentido. A maneira como ele tira o celular do silencioso só pra não perder sua mensagem, a maneira como ele te liga em vez de mandar mensagem só pra ouvir sua voz. Mal se conhecem e já têm uma música. Ele muda sua maneira de passar perfume, de usar o teclado do computador, de usar o celular. Aí você começa a pensar em como será apresentá-lo aos seus amigos. Ele é mais velho, e você pensa que eles talvez tenham pouco em comum, mas você pensa que tudo bem, porque a vida muda, a gente evolui, e você sabe que os amigos mudam, é natural. De repente você se assusta com o quão rapidamente a sua vida pode mudar, mas respira fundo, empolga-se, até: na sua idade, casais vão morar junto em pouco tempo. Ele cogita ir morar na Suécia em dois ou três anos. Você pensa que aquilo nunca passou pela sua cabeça, mas por que não? Você tem amigos na Suécia, você gosta de frio, e com ele um cenário diferente faz sentido. Muita coisa com ele faz sentido. Inclusive ter filhos. Você lembra que nunca quis ter filhos, mas nunca pensou que isso poderia impedir que outro os tivesse, e com ele você começa a pensar diferente. Você também começa a pensar nas suas escolhas até aqui. “Será que eu sou o suficiente pra ele?” Você sabe que não deveria pensar assim, mas isso fica na sua cabeça e faz você querer ser uma pessoa melhor. Você passa os dias planejando os momentos em que vão estar juntos. Os dias e as noites. Vocês dormem juntos, e você dorme como nunca dormiu com ninguém, porque sabe que ele vai estar lá no dia seguinte, e com sorte nos outros também. Você quer estar com ele mais do que com seus amigos com quem ele provavelmente não vai se enturmar e aceita que uma nova fase da sua vida está começando. Uma fase em que você pode a qualquer momento ter novos amigos, uma nova casa. E até ter filhos. Vocês já criaram uma rotina, e quando você tem certeza de que está tudo bem, ele fica estranho.

Tudo bem, todo mundo fica estranho, às vezes. Um dia ruim no trabalho, talvez. Você tenta não dar muita bola, mas não consegue. Aí você pensa como puderam chegar a esse nível em pouco mais de um mês. Há quarenta dias eram estranhos, e agora temia não ter os filhos dele. Você tenta deixar os pensamentos de lado, mas uma mensagem de “Vamos conversar?” os trazem de volta. Você esperava um encontro com um jantar e muitos beijos, mas contenta-se com um café – na mesma mesa em que se conheceram. Ele já está lá quando você chega. Ele te vê e sorri, um sorriso triste. Você faz o mesmo. A garçonete vem retirar os pedidos. Seria a mesma do mês anterior? Ele está sem jeito, mas acha um jeito de dizer o quanto te acha incrível, mas que não se vê em um relacionamento com você. Diz que falta algo, que não sabe o que é, mas que precisa ir buscar. Você dá um gole no café e digere as palavras. Você sabe que ele não quer te machucar, e isso torna tudo mais difícil. Você quer pedir pra que ele fique, mas não quer mendigar o seu amor. Você quer ficar com raiva, mas a tristeza não deixa. Você decide dizer a verdade: que quer estar com ele, mas que quer estar com alguém que fale de você como você fala dele. Ele aceita a sua tristeza. Agora é ele quem bebe o café. Você diz que não resta muito a dizer e que vai tentar transformá-lo numa boa lembrança. Ele diz que vai sempre se lembrar de você com carinho. Você se levanta tentando afastar o pensamento de que nunca vai conhecer sua família, seu cachorro, sua vida. De que ele vai ter os filhos de outra pessoa. Vocês se despedem com um abraço com mais sentimentos do que muitos beijos, e você sai, sem olhar pra trás, tentando entender como pôde se envolver tanto em tão pouco tempo. Tão de repente como as coisas começaram, elas terminam, e você parte, pensando que realmente nunca quis ter filhos.

Foto: “Nighthawks”, de Edward Hopper

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